quarta-feira, 6 de junho de 2018

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Briolanja: chegam à noite e partem de madrugada. Todos se vão como se eu fosse uma temível peste ou um satânico aviso de morte»

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«(…) Seguido à distância pelos populares, mantidos sempre em silêncio, respeito e medo, o cortejo caminhava a passo lento pelo trilho rugoso de acesso ao templo. O magote ia já longe, mas ainda assim, e durante algum tempo, continuava a chegar a casa do conde o eco da matinada, a vozearia disforme dos convidados, o interminável ladro dos cães em sobressalto. Logo que a procissão partiu em debandada, Briolanja Mendes foi para os seus aposentos rezar o padre-nosso, o credo e a salve-rainha e socorrer-se dos salmos e dos Evangelhos com vista a interpretações cabalísticas que só ela alcançava. O amor que tinha pela dama, cujo crescimento acompanhou com ternura e grande afecto, era muito superior a qualquer razão da sua própria existência. Daí, talvez, a constante preocupação que manifestava pelo futuro de Leonor Teles, que ela via mais talhada para mulher de rei do que de fidalgo, mesmo que rico e influente. É verdade que no mais íntimo de si moravam sérias reservas quanto ao comportamento da bela jovem. Já a tinha visto deitada com o irmão; sabia como ela se dera ao cavaleiro de Mogadouro no palheiro do solar; descobrira-a certo dia com o filho mais novo do alcaide, numa zona de mato e de pinheiros mansos junto à nascente de água na estrema norte do lameiro. Deste último episódio, que lhe chegava claro e nítido como a luz dessa manhã outonal, sobreveio-lhe a lembrança do preciso momento em que ao chegar às proximidades da nascente, aonde costumava ir de vez em quando espantar demónios e outros espíritos malignos, se deu conta de dois vultos plasmados sobre uma cama de fetos e de caruma, ternos e unidos pela mesma urgência de prazer e de espanto. Na altura, Briolanja Mendes ficou paralisada de assombro e medo. Se se anunciasse, mesmo que depois se desfizesse em desculpas sob o argumento de que não dera pela presença dos dois amantes, podia ser acusada por Leonor de perseguição e pagar cara a ousadia; se se escondesse corria o risco de passar horas intermináveis colada ao chão, atrás de uma qualquer cortina de arbustos, à espera que os dois jovens se cumprissem no deleite e na demora. Ponderadas as condições, a velha acabou por se emboscar num posto firme e seguro para fugir ao perigo de ser vista e satisfazer a irreprimível curiosidade sobre o ardor sexual da rapariga e o empenho do rapaz. A tudo assistiu com muita devoção e exacerbado fascínio e só mesmo quando, passadas mais de duas horas, lhe começaram a doer as pernas e o abdómen pela desconfortável posição a que se viu sujeita percebeu o estado de exaustão a que chegara.
Mais alguns minutos naquele suplício e desistiria. Ou talvez desfalecesse. Subitamente, já ela estava em preces de socorro a Santa Senhorinha de Basto, reparou que os jovens se levantaram à pressa para desatarem numa louca correria pelo mato fora em direcção a casa, a recomporem-se das vestes ainda desfraldadas, fugindo ao enorme susto causado pela proximidade de três caçadores que percorriam o lado de cima dos pinheiros mansos, junto a uma regada. Nesse momento, Briolanja Mendes revirou os olhos, deixou-se cair de costas, ergueu as mãos ao céu e pôs-se a rezar pela mercê de a santa lhe ter mandado àquela hora e àquele lugar os três caçadores. Mas já de regresso ao solar jurou a si mesma que, ao contrário do que sucedera no passado com a história relativa ao cavaleiro de Mogadouro, nunca diria a Leonor Teles o que acabara de observar. Só que as suas juras nem sempre se revelavam fiáveis.
Certa manhã, na semana seguinte, já o moço tinha deixado Barcelos para ir frequentar a Faculdade de Leis, em Coimbra, Briolanja foi chamada aos aposentos de Leonor para uma conversa. Chamei-te porque te quero revelar uma coisa que só tu e mais ninguém pode saber. Calarei para sempre o que tem para me dizer, senhora. Então fecha a porta e senta-te aí, aconselhou a jovem, indicando-lhe o respectivo lugar com um sinal de cabeça. Sabes, apaixonei-me por um belo rapaz. Eu sei que é uma paixão sem futuro, porque ele não é nobre nem nenhum dos seus parentes descende da nobreza. E sei também que mesmo que quisesse casar-me com ele jamais o meu estimado tio o consentiria. Sei tudo, portanto. Só não sei, isso não, que estranho destino é o meu que apenas me consente paixões ardentes e me faz esgotar em amores improváveis. Amei o rapaz de Mogadouro e depois partiu; apaixonei-me agora por este e também se foi. Parecem peregrinos, Briolanja: chegam à noite e partem de madrugada. Todos se vão como se eu fosse uma temível peste ou um satânico aviso de morte». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                      
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