segunda-feira, 11 de junho de 2018

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Mas, terminado o jantar e refluídos todos os convivas para o salão das ditas telas e dos ditos objectos, eis que a belíssima semiestrangeira dos olhos mais que verdes, mais que azuis…»

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«(…) Logo a seguir perdi-os de vista, sorvidos ambos na voragem da apresentação a outras figuras alegóricas, no entrechocado rumor de copos, de risos, de bandejas e de conversas, enquanto eu próprio, subitamente cercado pelas ambulantes alegorias da Política (homem), da Música (mulher) e da Diplomacia (assim-assim), me vi solicitado a concordar com todos eles, e cada um, sem ter opiniões de espécie alguma, julgava tê-las muito diferentes umas das outras, acerca do que deveria ser a nossa participação na próxima Bienal de Caracas ou de Bogotá. Reduzidas as inexistentes discordâncias ao confortável denominador comum do sim-mais-que-também, do antes-pelo-contrário e do pois-pois-talvez-porque-não, apareceram-me a Informação e a Literatura (ambas mulheres, e ambas escanzeladas ruínas que outrora conheci ainda na fase de monumentos) a reclamarem-me ansiosamente, decerto como variante à deglutição de sucessivos e vomitivos aperitivos, que lhes contasse aquela história que a segunda me tinha ouvido, quinze dias antes, na Galeria S. Mamede, sobre o recente e simultâneo aparecimento de riquíssimos poços de petróleo nos Jerónimos e na Batalha, no Templo de Diana e no Mosteiro de Alcobaça, na Torre de Belém e no Convento de Tomar, aparecimento de todo inventado, como é óbvio, mas que teria, quanto a mim, a dupla vantagem de resolver os problemas da nossa desgraçada economia e de melhor confundir ainda os ânimos estéreis de muitos dos meus confrades, cada vez mais preocupados com a salvação do nosso património cultural, mas cada vez menos capazes de o irem acrescentando.
Lá me esquivei o melhor que pude à insistência das duas escanifradas e ambulantes ruínas, garantindo-lhes que já estava a escrever (mentira), como derivativo a outros trabalhos, essa inocente historieta de art fiction, e que teria muito gosto em brevemente lhes enviar a ambas, só para elas, claro, e que as não divulgassem, umas cópias dactilografadas. (Nova mentira, evidentemente: viesse eu algum dia a escrever a historieta, quem me dera que a Literatura ma apreciasse, que a Informação ma difundisse! No fundo não passo de um escritor frustrado). Entretanto, abriram-se as portas ao fundo da sala, e logo a Informação e a Literatura, já cientes dos lugares que lhes competiam, foram das primeiras a precipitar-se por entre as seis ou sete mesinhas armadas no aposento contíguo. E eu, que me esquecera de consultar no vestíbulo o plano da distribuição dos lugares, só a custo verifiquei que me tinham emparedado entre uma corpulenta encenadora que sem dúvida representava o Teatro e uma redonda mas minúscula deputada que fiquei sem saber se simbolizava toda a Assembleia da República ou simplesmente os Direitos da Mulher. Não me era, nenhuma delas, graças aos deuses, nem suficientemente íntima nem completamente desconhecida para que eu tivesse de fazer grandes despesas com a conversa. E, graças aos deuses, acabava de sentar-se, na mesa ao lado, quase defronte de mim, sorrindo-me como se já de há muito fôssemos conhecidos, como se desde sempre nos tivéssemos conhecido, a belíssima estrangeira, ou quase, dos olhos incomparáveis. Mesmo sentada, parecia mais alta que duas ou três, entre elas a Publicidade, que por ali cirandavam ainda à procura dos respectivos lugares.
Terá sido a franqueza da minha inofensiva admiração, estética, digamos, o que imediatamente lhe inspirou confiança? Ou a aparente respeitabilidade da minha grimpa já um tanto grisalha? Ao longo do jantar, ambas as hipóteses me ocorreram: nem uma nem outra de facto estimulantes. Melhor seria contentar-me com o belíssimo espectáculo que me era inesperadamente oferecido; e que me compensava, só por si, de toda essa estopada alegórico-mundana. Mal o espectáculo findasse, escapar-me-ia com a minha mulher, tão depressa quanto possível, para longe daquele antro, sofisticado e ruidoso, de civilizados ameríndios. Quanto a mim, aliás, demasiado civilizados; ou excessivamente pouco ameríndios. Tinham-me logo dado náuseas, no vestíbulo, as revulsivas ornamentações com que esses pobres nómadas de primeira classe, mas de aspecto francamente aciganado, exuberantemente assinalavam o Natal já muito próximo. Depois, no salão, os objectos pseudo-incas ou pseudo-aztecas, diante dos quais se tinham extasiado as tontas da Música, da Informação e do Teatro, só conseguiam ser ligeiramente menos horrendos que certas pseudotelas de pseudodiscípulos do Kandinsky e do Klee, que os donos da casa tinham carregado como lembrança e testemunho da sua anterior passagem por um consulado na Alemanha Federal.
Mas, terminado o jantar e refluídos todos os convivas para o salão das ditas telas e dos ditos objectos, eis que a belíssima semiestrangeira dos olhos mais que verdes, mais que azuis, subitamente largando, lá ao fundo , sem grandes cerimónias, os alegóricos representantes da Política e da Economia, de quem já a tinham flanqueado durante a refeição, vem muito pausadamente ao meu encontro, sorrindo sempre, para apenas me dizer isto, na sua voz baixíssima, quase um murmúrio, com leve sotaque, mas sem a mínima inflexão interrogativa: sabe que não conheço nenhum trabalho do senhor. Depois emendou: nenhum seu trabalho. E acrescentou: a culpa é minha. Sou muito ignorante». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

Cortesia EPresença/JDACT