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Logo a seguir perdi-os de vista, sorvidos ambos na voragem da apresentação a outras
figuras alegóricas, no entrechocado rumor de copos, de risos, de bandejas e de conversas,
enquanto eu próprio, subitamente cercado pelas ambulantes alegorias da Política
(homem), da Música (mulher) e da Diplomacia (assim-assim), me vi solicitado a
concordar com todos eles, e cada um, sem ter opiniões de espécie alguma, julgava
tê-las muito diferentes umas das outras, acerca do que deveria ser a nossa participação
na próxima Bienal de Caracas ou de Bogotá. Reduzidas as inexistentes discordâncias
ao confortável denominador comum do sim-mais-que-também, do
antes-pelo-contrário e do pois-pois-talvez-porque-não, apareceram-me a Informação
e a Literatura (ambas mulheres, e ambas escanzeladas ruínas que outrora conheci
ainda na fase de monumentos) a reclamarem-me ansiosamente, decerto como
variante à deglutição de sucessivos e vomitivos aperitivos, que lhes contasse aquela
história que a segunda me tinha ouvido, quinze dias antes, na Galeria S. Mamede,
sobre o recente e simultâneo aparecimento de riquíssimos poços de petróleo nos Jerónimos
e na Batalha, no Templo de Diana e no Mosteiro de Alcobaça, na Torre de Belém e
no Convento de Tomar, aparecimento de todo inventado, como é óbvio, mas que teria,
quanto a mim, a dupla vantagem de resolver os problemas da nossa desgraçada economia
e de melhor confundir ainda os ânimos estéreis de muitos dos meus confrades, cada
vez mais preocupados com a salvação do nosso património cultural, mas cada vez
menos capazes de o irem acrescentando.
Lá me esquivei o melhor que pude à
insistência das duas escanifradas e ambulantes ruínas, garantindo-lhes que já estava
a escrever (mentira), como derivativo a outros trabalhos, essa inocente
historieta de art fiction, e que teria muito gosto em brevemente lhes enviar
a ambas, só para elas, claro, e que as não divulgassem, umas cópias dactilografadas.
(Nova mentira, evidentemente: viesse eu algum dia a escrever a historieta, quem
me dera que a Literatura ma apreciasse, que a Informação ma difundisse! No
fundo não passo de um escritor frustrado). Entretanto, abriram-se as portas ao fundo
da sala, e logo a Informação e a Literatura, já cientes dos lugares que lhes
competiam, foram das primeiras a precipitar-se por entre as seis ou sete
mesinhas armadas no aposento contíguo. E eu, que me esquecera de consultar no
vestíbulo o plano da distribuição dos lugares, só a custo verifiquei que me tinham
emparedado entre uma corpulenta encenadora que sem dúvida representava o Teatro
e uma redonda mas minúscula deputada que fiquei sem saber se simbolizava toda a
Assembleia da República ou simplesmente os Direitos da Mulher. Não me era, nenhuma
delas, graças aos deuses, nem suficientemente íntima nem completamente desconhecida
para que eu tivesse de fazer grandes despesas com a conversa. E, graças aos deuses,
acabava de sentar-se, na mesa ao lado, quase defronte de mim, sorrindo-me como se
já de há muito fôssemos conhecidos, como se desde sempre nos tivéssemos conhecido,
a belíssima estrangeira, ou quase, dos olhos incomparáveis. Mesmo sentada, parecia
mais alta que duas ou três, entre elas a Publicidade, que por ali cirandavam
ainda à procura dos respectivos lugares.
Terá sido a franqueza da minha
inofensiva admiração, estética, digamos, o que imediatamente lhe inspirou confiança?
Ou a aparente respeitabilidade da minha grimpa já um tanto grisalha? Ao longo do
jantar, ambas as hipóteses me ocorreram: nem uma nem outra de facto estimulantes.
Melhor seria contentar-me com o belíssimo espectáculo que me era
inesperadamente oferecido; e que me compensava, só por si, de toda essa estopada
alegórico-mundana. Mal o espectáculo findasse, escapar-me-ia com a minha mulher,
tão depressa quanto possível, para longe daquele antro, sofisticado e ruidoso, de
civilizados ameríndios. Quanto a mim, aliás, demasiado civilizados; ou excessivamente
pouco ameríndios. Tinham-me logo dado náuseas, no vestíbulo, as revulsivas
ornamentações com que esses pobres nómadas de primeira classe, mas de aspecto
francamente aciganado, exuberantemente assinalavam o Natal já muito próximo.
Depois, no salão, os objectos pseudo-incas ou pseudo-aztecas, diante dos quais
se tinham extasiado as tontas da Música, da Informação e do Teatro, só conseguiam
ser ligeiramente menos horrendos que certas pseudotelas de pseudodiscípulos do Kandinsky
e do Klee, que os donos da casa tinham carregado como lembrança e testemunho da
sua anterior passagem por um consulado na Alemanha Federal.
Mas,
terminado o jantar e refluídos todos os convivas para o salão das ditas telas e
dos ditos objectos, eis que a belíssima semiestrangeira dos olhos mais que verdes,
mais que azuis, subitamente largando, lá ao fundo , sem grandes cerimónias, os alegóricos
representantes da Política e da Economia, de quem já a tinham flanqueado
durante a refeição, vem muito pausadamente ao meu encontro, sorrindo sempre,
para apenas me dizer isto, na sua voz baixíssima, quase um murmúrio, com leve
sotaque, mas sem a mínima inflexão interrogativa: sabe que não conheço nenhum
trabalho do senhor. Depois emendou: nenhum seu trabalho. E acrescentou: a culpa
é minha. Sou muito ignorante». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz,
Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.
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