«(…)
Um ponto de luz, pequeno como uma estrela, perfurou a grande cúpula. Cresceu em
círculo e tirou-o do seu poço negro. Não, quero ficar. Deixem-me aqui nas
trevas da masmorra. Mas se sentia inexoravelmente arrastado, atirado para
dentro do círculo em expansão, até ressurgir na sala, onde continuava James
Cagney, e agora uma moça, que não representava a única diferença que havia a
registar. Tinha um fio eléctrico lhe vincando o rosto. Tinha sido apertado com
força por debaixo do nariz e atava-o ao espaldar alto da cadeira, de tal modo
que sentia os contornos esculpidos de uma espécie de antigo brasão lhe
penetrando no couro cabeludo. Mas havia mais. Valha-me Maria, Mãe de Cristo,
Virgen de la Macarena, de la... De la Esperanza... O que me fizeram?
Sentia lágrimas quentes nas
bochechas, correndo pelos lados do rosto até aos cantos da boca. Caíam-lhe
pesadamente na camisa branca. Deixavam um sabor de metal adocicado entre os
dentes. O que me fizeram. A tela da televisão rolou na direcção dele e se
deteve junto dos seus joelhos. Estavam acontecendo demasiadas coisas ao mesmo
tempo. Cagney beijava a moça, provocadoramente. A corda se enfiava em seu
septo. O pânico crescia dos pés, espalhando-se violentamente pelo corpo,
reunindo mais pânico pelo caminho, se afunilando à entrada dos órgãos, se
dirigindo veloz para a aorta em compressão. Irreprimível. Imbatível. Impensável.
Tinha o cérebro lívido, os olhos ardendo, as lágrimas irrompendo sem cessar. As
pálpebras, rastilhos queimando na escuridão, avançavam sobre as pupilas negras
e brilhantes, ferindo o branco dos olhos. Surgiu um conta-gotas na sua visão
incendiada, com uma trémula gota de orvalho suspensa no tubo de vidro. Os olhos
iam absorvê-la. E pedir mais. Agora vai ver tudo, disse a voz. E eu forneço as
lágrimas. A gota caiu no olho. A fita começou a rodar e gemeu. James Cagney e a
moça foram consumidos por uma crescente tempestade. Depois veio a gritaria e a
administração meticulosa de lágrimas.
Tudo
começou no momento em que entrou naquela sala e viu aquele rosto. Tinha
recebido a ligação às 8:15, precisamente quando se preparava para sair de casa:
um cadáver, uma suspeita de crime e um endereço. Semana Santa. Fazia sentido
que houvesse pelo menos um assassínio na Semana Santa; não que tivesse algum
efeito sobre as multidões que acompanhavam a deslocação diária de Virgens
Santas, tremendo nos seus andores, convergindo para a catedral. Tirou
cuidadosamente o carro do casarão que pertencera ao pai, na calle Bailén.
Os pneus trepidaram nos paralelepípedos das ruas estreitas e vazias. A zona
antiga, relutante em acordar em qualquer época do ano, estava especialmente
silenciosa àquela hora durante a Semana Santa. Entrou no largo fronteiro ao
Museo de Bellas Artes. As casas caiadas, emolduradas a ocre, estavam
silenciosas por detrás das palmeiras altaneiras, duas colossais árvores da borracha
e grandes jacarandás que ainda não tinham florido. Abriu a janela à manhã,
ainda fresca devido ao orvalho da noite anterior, e rumou ao Guadalquivir e à
alameda que forma o Paseo de Cristóbal Cólon. Teve uma sensação que
beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe,
na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as
primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril. Isto era o mais próximo
que conseguia da felicidade, nos dias que corriam, e ainda durava quando virou à
direita, depois da Torre del Oro, e atravessou o rio, que estava
enevoado sob os primeiros raios de sol, afastando-se da parte velha da cidade.
Na Plaza de Cuba, desviou-se do caminho habitual de ida para o trabalho, e
desceu a calle de Asunción.
O
novo juez de guardia, um muito jovem juiz de escala, estivera à sua espera
no imaculado patamar de entrada, em mármore branco, do grande e dispendioso
apartamento de Raúl Jiménez, no sexto andar do Edificio del Presidente. E tinha
tentado avisá-lo. Lembrava-se disso. Prepare-se, inspector-chefe, dissera. Para
o quê? Perguntou Falcón. Durante o embaraçoso silêncio que se seguiu, o inspector-chefe
Javier Falcón tinha escrutinado minuciosamente o aspecto do terno do juez de
guardia, que decidiu ser italiano ou de um estilista espanhol; Adolfo Dominguez,
talvez. Caro, para um jovem juiz como Esteban Calderón, de trinta e seis anos e
apenas um de serviço. A aparente falta de interesse de Falcón decidiu Calderón,
que não quis ser tomado por ingénuo pelo inspector-chefe do Grupo de Homicidios
de Sevilla, de quarenta e cinco anos, mais de vinte dos quais passados vendo
gente assassinada em Barcelona, Saragoça, Madrid e agora Sevilha». In
Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla,
Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT