domingo, 24 de outubro de 2021

A Bailarina de Auschwitz. Edith Eva Eger. «Conte-me porque está aqui, tentei novamente. Ele continuou mudo. Senti meu corpo ficar tenso e ser tomado por uma onda de incerteza…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ele não respondeu. Nem sequer piscou. Ele me lembrava um personagem que havia sido transformado em pedra. Que feitiço poderia libertá-lo? Porquê agora?, perguntei. Essa era a minha arma secreta. A pergunta que sempre faço a meus pacientes na primeira visita. Preciso saber por que eles estão motivados a mudar. Porque hoje, entre todos os dias, eles querem começar a trabalhar comigo? Porque hoje é diferente de ontem, da semana passada ou do ano passado? Porque é diferente de amanhã? Às vezes, a dor nos empurra e às vezes, a esperança nos puxa. Perguntar Porquê agora? não é apenas fazer uma pergunta, é perguntar tudo. Um dos olhos dele se fechou momentaneamente, mas ele não disse nada. Conte-me porque está aqui, tentei novamente. Ele continuou mudo. Senti meu corpo ficar tenso e ser tomado por uma onda de incerteza e pela consciência das ténues e decisivas encruzilhadas onde nos encontrávamos: dois seres humanos cara a cara, ambos vulneráveis, ambos correndo riscos enquanto nos esforçávamos para dar nome à angústia e descobrir sua cura. Jason não havia chegado com uma indicação oficial. Aparentemente viera ao meu consultório por conta própria. Mas eu sabia, por experiência pessoal e clínica, que mesmo quando a pessoa decide se curar, pode permanecer travada durante anos.

Considerando a gravidade dos sintomas que ele exibia, se eu não fosse capaz de fazê-lo falar, minha única alternativa seria recomendá-lo a meu colega, o psiquiatra chefe do Centro Médico do Exército William Beaumont, onde fiz o meu doutoramento. O Dr. Harold Kolmer diagnosticaria a catatonia de Jason, o internaria e provavelmente receitaria um medicamento antipsicótico, como o Haldol. Imaginei Jason numa camisola de hospital, os olhos ainda vidrados e o corpo, naquele momento tão tenso, retorcendo-se em convulsões devido aos espasmos musculares muitas vezes provocados pelos remédios prescritos para controlar a psicose. Confio totalmente no conhecimento de meus colegas psiquiatras e sou grata aos medicamentos que salvam vidas, mas não gosto de pular directo para o internamento se houver qualquer chance de sucesso com uma intervenção terapêutica. Eu temia que, se recomendasse internamento e medicação para Jason sem primeiro explorar outras opções, ele trocaria um tipo de entorpecimento por outro. Os membros paralisados ganhariam movimentos involuntários da discinesia, uma espécie de dança descoordenada de tiques e movimentos repetitivos que acontece quando o sistema nervoso envia o sinal para o corpo se mover sem a permissão da mente. O sofrimento dele, não importava a causa, poderia ser silenciado, mas não resolvido, pelas drogas. Talvez ele viesse a sentir-se melhor, ou sentir menos, o que muitas vezes confundimos com a sensação de melhorar, mas não ficaria curado.

E agora? Eu pensava enquanto os minutos se arrastavam pesados e Jason continuava sentado estático em meu sofá. Ele estava ali porque queria, mas ainda assim permanecia aprisionado. Eu tinha apenas uma hora. Uma oportunidade. Conseguiria fazê-lo se abrir? Conseguiria ajudá-lo a anular o potencial violento que eu sentia tão vividamente como o vento do ar condicionado na minha pele? Conseguiria mostrar para ele que, quaisquer que fossem seu problema e sua dor, ele já possuía a chave para a própria liberdade? Na época, eu não tinha como saber que, se fracassasse em fazer Jason falar naquele dia, um destino bem pior do que um quarto de hospital o aguardava: uma vida numa prisão de verdade, provavelmente no corredor da morte. Na época, eu só sabia que precisava tentar. Enquanto analisava Jason, entendi que para alcançá-lo não poderia apelar para os sentimentos. Devia usar uma linguagem mais confortável e familiar para alguém das Forças Armadas. Eu devia dar ordens. Minha única esperança de destravá-lo era fazer com que o sangue circulasse pelo seu corpo. Vamos dar uma caminhada, falei. Não perguntei. Dei a ordem. Capitão, vamos levar Tess ao parque. Agora. Jason pareceu entrar em pânico por um momento. Lá estava uma mulher, uma estranha, falando com um pesado sotaque húngaro e dizendo a ele o que fazer. Vi que ele olhou ao redor, como se estivesse pensando Como faço para sair daqui?. Mas ele era um bom soldado. Ficou de pé. Sim, senhora, respondeu. Sim, senhora». In Edith Eva Eger, A Bailarina de Auschwitz, 2017, Editora Desassossego, 2018, ISBN 978-989-889-218-8.

Cortesia de EDesassossego/JDACT

JDACT, Edith Eva Eger, Guerra, Literatura, Conhecimento,