O malogro dos estudos bíblicos
«(…) Em contraste com o pastor
culto, o rebanho não teve oportunidade sequer de se familiarizar com o indício
em questão ou de encarar as incoerências entre relatos bíblicos e o pano de
fundo da história real. Para o cristão devoto, nunca houve necessidade de
conciliar facto e fé, história e teologia, simplesmente porque ele nunca teve
qualquer razão para supor que poderia haver distinção entre essas coisas.
Talvez não tenha sequer pensado conscientemente na Palestina de 2 mil anos
atrás como um lugar muito real, situado no espaço e no tempo, sujeito a um
confusa mescla de factores sociais, psicológicos, políticos, económicos e
religiosos, o mesmo tipo de factores que operam em qualquer localidade real,
passada ou presente. Ao contrário, nos Evangelhos a história está com frequência
inteiramente divorciada de qualquer contexto histórico, uma narrativa de
absoluta, mítica e intemporal simplicidade, encenada numa espécie de limbo, uma
terra do nunca de muito tempo atrás e muito longe daqui. Jesus, por exemplo,
aparece ora na Galileia, ora na Judeia; ora está em Jerusalém, ora nas margens
do Jordão. O cristão moderno, contudo, com frequência não faz ideia da relação
geográfica e política existente entre esses lugares, a que distância podiam
estar um do outro, quanto tempo poderia demandar a viagem de um a outro. Os
títulos dos vários funcionários públicos parece-lhe muitas vezes sem sentido.
Romanos e judeus circulam confusamente em segundo plano, como figurantes num
cenário de filmagem e, quando há alguma imagem concreta deles, ela em geral
deriva de uma ou outra superprodução de Hollywood, Pilatos com sotaque do
Brooklin. Para a congregação leiga, os relatos das Escrituras são história
literal, uma história independente e não menos verdadeira por estar dissociada
de um contexto histórico. Não tendo aprendido outra coisa de seus mentores
espirituais, muitos crentes devotos nunca sentiram qualquer necessidade de
enfrentar os problemas suscitados por tal contexto. Quando subitamente
formulados por um livro como o nosso, esses problemas assumem para essas
pessoas, de maneira muito compreensível, a forma de revelação ou de sacrilégio.
E nós mesmos passamos a ser instintivamente vistos como anticristãos, como
escritores plenamente engajados numa cruzada que nos lança, como adversários militantes,
contra o establishment
eclesiástico, como se estivéssemos pessoalmente interessados em derrubar o
edifício da cristandade (e fôssemos ingénuos a ponto de pensar que isso é
possível).
Nossa conclusão em perspectiva
Como seria desnecessário dizer, não
acalentamos tais intenções. Não estamos engajados em nenhum tipo de cruzada. Não
temos nenhum desejo particular de converter ninguém. Certamente não estamos
tentando deliberadamente abalar a fé do povo. Em O santo graal e a
linhagem sagrada nossa motivação foi, na verdade, bastante simples.
Tínhamos uma história para contar, e essa história nos parecia merecer,
especialmente, ser contada. Estivemos envolvidos numa aventura histórica tão palpitante
quanto uma história de detective ou um romance policial. Ao mesmo tempo, a
aventura se mostrara também bastante informativa, revelando vastos tratos do
passado da nossa civilização, e não apenas bíblico, que de outro modo nós e
nossos leitores não poderíamos explorar. Desejávamos partilhar nossa história,
num espírito muito semelhante àquele que nos leva a puxar o braço de uma pessoa
amiga e chamar sua atenção para uma paisagem surpreendente ou um pôr-do-sol
espetacular». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança
Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.
Cortesia de ENFronteira/JDACT
Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, JDACT, Literatura, Religião, Crónica,