domingo, 10 de outubro de 2021

As Mulheres do Deserto. Alice Hoffman. «Por essa época eu tinha começado a perceber o que ele fazia quando saía para se encontrar com os companheiros durante a noite»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando me tornei mulher, não tive mãe para me dizer o que fazer com o sangue que veio com a lua ou para me acompanhar na mikvah, o banho ritual que teria me purgado com uma imersão total na pureza. A primeira vez que sangrei pensei que estivesse morrendo, até que uma velha que era minha vizinha teve pena de mim e me disse a verdade sobre os ciclos mensais das mulheres. Baixei os olhos enquanto ela falava, envergonhada de ser informada de tais detalhes íntimos por uma estranha, sem acreditar muito no que ela dizia, imaginando porque o nosso Deus faria com que eu me tornasse impura. Mesmo agora, acho que poderia estar certa por tremer de medo no dia em que sangrei pela primeira vez. Talvez o facto de me tornar mulher fosse o fim para mim, por ter nascido no sangue e merecer ser tirada da vida do mesmo modo. Não me incomodei em contornar os meus olhos com kohl ou esfregar óleo de romã nos pulsos. Não perfumei o meu cabelo, em vez disso prendi as tranças na nuca e depois cobri a cabeça com um xaile de lã do tecido mais simples que pude encontrar. Meu pai só se dirigia a mim quando me chamava para trazer a sua refeição ou lavar as suas roupas. Por essa época eu tinha começado a perceber o que ele fazia quando saía para se encontrar com os companheiros durante a noite.

Geralmente ele envolvia os ombros com um manto cinza-claro, que se dizia ter sido tecido com os fios de uma teia de aranha. Eu tocara a sua bainha uma vez. Era tão sinistro quanto belo, concedendo ao seu portador a capacidade de se dissimular. Quando o meu pai saía, desaparecia, porque tinha o poder de desaparecer mesmo ele estando à sua frente. Eu ouvira meu pai ser chamado de assassino pelos nossos vizinhos. Franzira a testa e não acreditara, mas, quanto mais analisava as suas idas e vindas, mais sabia que era verdade. Ele fazia parte de um grupo secreto de homens que carregavam a adaga encurvada dos sicários, zelotes fanáticos que escondiam as facas afiadas sob seus mantos e as usavam para punir aqueles que se recusavam a lutar contra Roma, especialmente os sacerdotes que aceitassem sacrifícios da legião e seus favores ao Templo. Os assassinos eram implacáveis, até eu sabia disso. Ninguém estava a salvo da sua ira; os outros zelotes os repudiavam, contestando os seus métodos brutais. Dizia-se que os sicários lutavam contra os judeus que se curvavam demais a Roma, e que Adonai, o nosso grande Deus, nunca perdoaria o assassinato, especialmente de irmão contra irmão. Mas os judeus eram uma fraternidade dividida, em conflito na prática e nas orações. Os que pertenciam aos sicários riam-se da ideia de que Deus não desejava outra coisa senão que todos os homens fossem livres. O preço era de nenhuma consequência. Seu objectivo era um só governante, não imperadores, não reis, só o Rei da Criação. Somente ele governaria quando tivessem terminado o seu trabalho na terra.

Meu pai fora um assassino por tanto tempo que os homens que ele matara eram como folhas de uma árvore de salgueiro, muitas para contar. Porque ele possuía uma habilidade que poucos homens tinham e afirmava ter o poder da invisibilidade, era capaz de entrar numa sala como uma sombra e despachar o inimigo antes que a vítima estivesse mesmo ciente de que uma janela se abrira ou que uma porta se fechara. Para a minha tristeza, o meu irmão seguiu o caminho do nosso pai assim que teve idade suficiente para se tornar um discípulo da vingança. Amram era perigosamente susceptível a seus estilos violentos, pois na sua pureza via o mundo como bom ou mau, sem gradação entre os extremos. Sempre os espiava juntos, meu pai falando no ouvido do meu irmão, ensinando-lhe as regras do assassinato. Um dia, enquanto reunia as túnicas e a capa de Amram para lavar no poço, encontrei uma adaga, já marcada por uma linha carmesim. Teria chorado se fosse capaz, mas tinha abandonado as lágrimas. Não afogaria mais ninguém como afogara a minha mãe, de dentro para fora». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN 978-854-220-122-2.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

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