quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «… deitou-se primeiro em cima dele, e da segunda vez dobrou os joelhos e afundou a cara na almofada. Eu era dele, toda dele, dir-me-ia mais tarde»

 

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Fizemos os dois juntos a viagem de volta, e estávamos quase a chegar a casa quando perguntei ao meu melhor amigo: Que vos pareceu a Maria Gomes? Afonso Henriques sorriu-me. Bonita. E calma. A irmã é mais estouvada. Nesse momento, atrevi-me a dizer: Chamoa está encantada por vós. Disse-mo a Maria. O príncipe limitou-se a encolher os ombros e entrámos sem fazer barulho, evitando acordar os meus irmãos mais novos. Afonso Henriques dirigiu-se para a escada e subiu. O seu quarto era lá em cima, enquanto nós ficávamos no piso térreo. Depois de se despir, deitou-se, e recordou o agitado dia. Reza a lenda que foi nessa noite que teve a ideia de se armar cavaleiro a si próprio, como faziam os reis, mas não estou certo disso, pois minha prima Raimunda contou-me que, mal o ouvira subir, entrara no quarto. Sois vós?, perguntara ele, em voz baixa. Das sombras, um vulto magro avançou na sua direcção, enquanto despia o saiote e a camisa. Afonso Henriques levantou a colcha e deixou que minha prima Raimunda, já nua, entrasse na cama. Ela amava-o tanto! Nessa noite, tal como no passado vira dona Teresa fazer ao Trava, deitou-se primeiro em cima dele, e da segunda vez dobrou os joelhos e afundou a cara na almofada. Eu era dele, toda dele, dir-me-ia mais tarde.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

Muitos anos depois, Abu Zhakaria contou-nos que foi uma ferida profunda que comoveu o rei dos muçulmanos. Taxfin fora atingido fortemente, numa batalha nos desertos africanos, e o califa Ali Yusuf veio visitá-lo à sua tenda, onde ele gemia de dores e febres, e destinou os seus melhores curandeiros para o tratarem, mas até ele foi obrigado a reconhecer que, golpeado daquela forma, nunca mais Taxfin seria o guerreiro de outrora. Por isso, o califa disse-lhe que era melhor regressar a Córdova, pois ali já não tinha nada a fazer. Nove anos depois, Ali Yusuf, o carregado de pérolas, o que batia as alpercatas no chão para matar formigas, e que cheirava a âmbar mesmo no deserto, deixara-o finalmente partir. A viagem de regresso fora um tormento. Primeiro os desertos africanos, depois o mar Mediterrâneo, por fim as estradas hispânicas desde a costa até Córdova. Taxfin sofreu dores inimagináveis, mas cerrou os dentes e aguentou calado. Regressava à sua terra, era tudo o que queria, e mais valia isso do que estar algemado ao califa por uma ordem que, nove anos antes, parecera vitalícia.

Chegados a Córdova, rapidamente ele e Zhakaria perceberam que a cidade lhes era hostil. Taxfin fora destituído há nove anos, e o actual governador, que já era o terceiro wali depois dele, não gostou de saber que um antecessor regressara. Embora Taxfin já não tivesse direito a habitar no Azzahrat, amealhara riquezas suficientes para viver com esplendor, ou para instigar revoltas locais. O incumbente do palácio, temeroso, mandou os seus guardas vigiarem-no, e por isso, duas semanas depois, um dorido Taxfin decidiu rumar à serra Morena, para se instalar no belo castelo de Hisn Abi Cherif, cuja linda cor, o arenito vermelho, o distinguia num verdejante vale, e que pertencia há séculos à família do primeiro marido de Zulmira. Com ele, levou apenas Abu Zhakaria, que aos vinte e sete anos era um portento de agilidade, força e sabedoria, um dos melhores guerreiros que Taxfin alguma vez vira, e que o seguia com uma dedicação inultrapassável». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,