domingo, 31 de outubro de 2021

No 31. Robert K. Massie. Catarina a Grande. «As famílias principescas do século XVIII, mesmo as de menor importância, mantinham o aparato da classe. As crianças da nobreza tinham amas, governantas, tutores, professores de música, dança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Infância de Sofia

«(…) Uma possível explicação é que o processo do parto quase custou a vida de Joana. Depois do nascimento de Sofia, a mãe adolescente permaneceu 19 meses confinada ao leito. Uma segunda explicação é que Joana era ainda muito jovem e suas altas ambições na vida estavam longe de realizadas. Mas o motivo mais forte, subjacente, foi que o bebé era menina, e não menino. Ironicamente, embora ela não pudesse saber então, o nascimento dessa filha viria coroar a realização da sua vida. Se o bebé tivesse sido o menino tão ardentemente desejado, e se tivesse vivido até a idade adulta, teria sucedido o pai como príncipe de Anhalt-Zerbst. Nesse caso, a história da Rússia teria sido diferente e jamais teria existido o pequeno nicho que Joana Elizabeth conquistou. Dezoito meses depois do nascimento da filha, Joana deu à luz o filho que foi sua paixão. Seu amor por esse segundo filho, Guilherme Cristiano, tornou-se ainda mais intenso quando ela percebeu que a criança tinha um problema sério. O menino, que parecia sofrer de raquitismo, era a sua obsessão. Ela o acariciava, mimava e não o perdia de vista, dedicando-lhe toda a afeição que negara à filha. Sofia, já bem ciente de que seu nascimento havia sido uma decepção para a mãe, observava o amor com que Joana cercava o irmãozinho. Beijinhos afectuosos, sussurros carinhosos, ternos afagos concedidos ao menino e Sofia observava. Certamente, é comum a mãe de um filho com dificuldades ou uma doença crónica dedicar mais tempo a essa criança, assim como é normal que outras crianças da família se ressintam dessa afeição desproporcional. Mas a rejeição de Joana por Sofia começara antes do nascimento de Guilherme e persistiu, de forma ainda mais agravada. O resultado desse favoritismo materno foi uma ferida permanente. A maioria das crianças rejeitadas ou negligenciadas em favor de um irmão reage mais ou menos como Sofia reagiu: para evitar maiores mágoas, bloqueou seus sentimentos. Nada lhe era dado, e nada era esperado. O pequeno Guilherme, que simplesmente aceitava a afeição da mãe como coisa normal, não tinha culpa nenhuma da injustiça, mas mesmo assim Sofia o odiava. Quarenta anos mais tarde, escrevendo suas Memoirs, seu ressentimento ainda despontava: Disseram-me que não fui recebida com muita alegria. Meu pai achava que eu era um anjo; minha mãe não prestava muita atenção em mim. Um ano e meio depois, ela [Joana] deu à luz um menino a quem idolatrou. Eu era meramente tolerada e frequentemente repreendida com uma violência e raiva que eu não merecia. Eu sentia isso sem que o motivo estivesse perfeitamente claro em minha mente.

Guilherme Cristiano não é mais mencionado nas Memoirs até sua morte, em 1742, com a idade de 12 anos. Então, o breve relato de Sofia é puramente clínico: Ele viveu apenas até os 12 anos e morreu de febre pintada [escarlatina]. Só após sua morte souberam a causa da doença que o obrigava a andar sempre de muletas e para a qual os remédios sempre lhe eram dados em vão, e foram consultados os mais famosos médicos da Alemanha. Aconselharam a levá-lo aos banhos em Baden e Karlsbad, mas a cada vez ele voltava tão manco quanto antes, e sua perna ficava menor à proporção que se tornava mais alto. Depois da sua morte, seu corpo foi dissecado e descobriram que o quadril era deslocado, e deve ter sido assim desde bebé… Na morte dele, minha mãe ficou inconsolável e foi necessária a presença de toda a família para ajudá-la a suportar a dor.

Essa amargura apenas sugere o enorme ressentimento de Sofia com relação à mãe. O mal causado à menina pelas óbvias demonstrações da preferência de Joana marcou profundamente o carácter de Sofia. Sua rejeição em criança ajuda a explicar a busca constante, quando mulher, por aquilo que tinha perdido. Mesmo quando imperatriz Catarina, no auge do poder autocrático, ela desejava não somente ser admirada por sua mente extraordinária e obedecida enquanto imperatriz, mas também encontrar o afecto elementar que seu irmão, e não ela, havia recebido da mãe.

As famílias principescas do século XVIII, mesmo as de menor importância, mantinham o aparato da classe. As crianças da nobreza tinham amas, governantas, tutores, professores de música, dança, equitação e religião para exercitá-las no protocolo, na conduta e nas crenças das cortes europeias. A etiqueta era primordial; as crianças praticavam cumprimentos e reverências centenas de vezes até que a perfeição fosse automática. As aulas de linguagem eram de suma importância. Os jovens príncipes e princesas tinham de saber falar e escrever em francês, a língua da intelligentsia europeia. Nas famílias aristocráticas germânicas, a língua alemã era considerada vulgar. A influência de sua governanta, Elizabeth (Babet) Cardel, foi fundamental nessa época da vida de Sofia. Babet, francesa huguenote que achou a Alemanha protestante mais conveniente do que a França católica, foi encarregada de supervisionar a educação de Sofia. Babet logo entendeu que a frequente beligerância da sua pupila era fruto da solidão e de uma ânsia por estímulos e afeição. Babet lhe deu isso. E também deu a Sofia o que veio a ser seu permanente amor pelo idioma francês, com todas as suas possibilidades de lógica, subtileza, espírito e vivacidade na escrita e na conversação. As aulas começaram com Les Fables de La Fontaine e depois passaram a Corneille, Racine e Molière. Boa parte de seus estudos, Sofia diria mais tarde, havia sido pura memorização. Logo notaram que eu tinha boa memória; a partir daí, eu era atormentada incessantemente para aprender tudo de cor. Ainda possuo a Bíblia alemã em que todos os versículos que eu precisava decorar estão sublinhados com tinta vermelha». In Robert K. Massie, Catarina a Grande, Editora Rocco, 2012, ISBN 978-853-252-799-8.

Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Robert K. Massie, Literatura, Conhecimento,