«(…) Rosa, no entanto, não tinha pressa em casar-se, quase esquecera o único beijo que haviam trocado na despedida e também a cor dos olhos desse noivo tenaz. Por influência das novelas românticas, que eram a sua única leitura, gostava de o imaginar com botas de cabedal, a pele queimada pelos ventos do deserto, cavando a terra em busca de tesouros de piratas, dobrões espanhóis e jóias dos Incas, e era inútil que Nívea a tentasse convencer de que as riquezas das minas estavam metidas nas pedras, porque para Rosa era impossível que Esteban Trueba recolhesse toneladas de penhascos na esperança de que, ao submetê-los a iníquos processos crematórios, cuspissem um grama de ouro. Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo.
Uma barba do espartilho de Nívea
quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar
dentro do vestido de veludo azul, com a gola de renda demasiado alta, as mangas
muito estreitas, a cintura tão apertada que, quando tirava o cinto, passava uma
boa meia hora com retorcidelas de barriga até as tripas se acomodarem na sua
posição normal. Tinham discutido isso muitas vezes, ela e as amigas
sufragistas, e haviam chegado à conclusão de que, enquanto as mulheres não
encurtassem as saias e o cabelo e não despissem os saiotes, tudo ficava na
mesma, mesmo que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque
de modo algum teriam coragem de o fazer; ela própria não tinha coragem para ser
das primeiras a abandonar a moda. Notou que a voz da Galiza tinha deixado de
martelar-lhe o cérebro. Estava numa dessas grandes pausas do sermão que o padre
empregava com frequência, por conhecer bem o efeito de um silêncio incómodo. Os
seus olhos ardentes aproveitavam esses momentos para observar os paroquianos um
por um. Nívea largou a mão de Clara e procurou um lenço na manga para enxugar
uma gota de suor que lhe escorria pelo pescoço. O silêncio tornou-se pesado, o
tempo pareceu parar dentro da igreja, mas ninguém se atreveu a tossir ou a
ajeitar-se no banco, para não atrair a atenção do padre Restrepo. As suas últimas
frases ainda vibravam entre as colunas.
E
nesse momento, como Nívea recordou anos mais tarde, no meio da ansiedade e do silêncio,
ouviu-se com toda a nitidez a voz da pequena Clara: Pst! Padre Restrepo! Se o
conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta,
que já estava no ar para assinalar novos suplícios, ficou suspenso como um pára-raios
sobre a sua cabeça. As pessoas deixaram de respirar e os que estavam cabeceando
acordaram. Os esposos del Valle foram os primeiros a reagir ao sentir que o pânico
os invadia e ao ver que os filhos começavam a agitar-se nervosos. Severo compreendeu
que devia actuar antes que rebentasse o riso geral ou se desencadeasse algum cataclismo
celestial. Pegou na mulher pelo braço e em Clara pelo pescoço e saiu arrastando-as
a grandes passadas, seguido pelos outros filhos, que se precipitaram em tropel
para a porta. Conseguiram sair antes que o sacerdote pudesse invocar um raio
que os transformasse em estátuas de sal, mas do umbral da porta ouviram a sua
terrível voz de arcanjo ofendido: Endemoninhada! Soberba endemoninhada!» In
Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, Isabel Allende, Literatura, O Saber,