«(…) Estas palavras do padre Restrepo permaneceram na memória da família com o peso de um diagnóstico e, nos anos seguintes, tiveram ocasião de as recordar variadas vezes. A única que não voltou a pensar nelas foi a própria Clara, que se limitou a anotá-las no seu diário para logo as esquecer. Os pais, em contrapartida, não puderam ignorá-las, apesar de concordarem que a possessão demoníaca e a soberbia eram dois pecados demasiado grandes para uma criança tão pequena. Temiam a maldição do povo e o fanatismo do padre Restrepo. Até esse dia, não tinham posto nome às excentricidades da filha mais nova nem as haviam relacionado com influências satânicas. Tomavam-nas como uma característica da menina, como o coxear era a de Luís e a beleza a de Rosa. Os poderes mentais de Clara não causavam incómodo a ninguém e não produziam desordem de maior; manifestavam-se quase sempre em assuntos de pouca importância e na estrita intimidade do lar. Algumas vezes, à hora da refeição, quando estavam todos reunidos na grande sala de jantar da casa, sentados em absoluta ordem de dignidade e hierarquia, o saleiro começava a vibrar e deslocava-se depois pela mesa fora entre copos e pratos, sem ter havido para isso nenhuma fonte de energia conhecida nem truque de ilusionista. Nívea dava um puxão às tranças de Clara e com esse sistema conseguia que a filha abandonasse a distracção lunática e devolvesse a normalidade ao saleiro, que acabava por recuperar a imobilidade. Os irmãos tinham-se organizado para que, no caso de haver visitas, aquele que estivesse mais perto deter com a mão o que estivesse andando sobre a mesa antes que os estranhos dessem conta disso e apanhassem um susto. A família continuava a comer sem comentários. Também se tinham habituado aos presságios da irmã mais nova. Ela anunciava os tremores de terra com alguma antecipação, o que resultava muito útil naquele pais de catástrofes, porque dava tempo de pôr a salvo a baixela e deixar ao alcance da mão as pantufas para sair noite dentro. Aos seis anos Clara previu que o cavalo havia de deixar cair Luís, este negou-se a dar-lhe ouvidos e desde então tinha um quadril deslocado. Com o tempo, encurtou-se-lhe a perna esquerda e teve de usar um sapato especial com uma grande sola que ele próprio fabricava. Nessa ocasião Nívea inquietou-se, mas a Ama tranquilizou-a dizendo que há muitos meninos que voam como as moscas, que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas que tudo isso lhes passa quando perdem a inocência.
Nenhum chega a grande nesse
estado, explicou. Espere que à menina lhe chegue a demonstração e vai ver que
perde a mania de andar a mover os móveis e a anunciar desgraças. A Ama preferia
Clara. Tinha-a ajudado a nascer e era a única pessoa que compreendia a natureza
extravagante da menina. Quando Clara saiu do ventre da mãe, a Ama embalou-a, lavou-a
e desde esse momento amou desesperadamente a frágil criança com os pulmões
cheios de expectoração, sempre à beira de perder o alento e pôr-se roxa, que
tinha feito reviver com o calor dos seus grandes peitos quando lhe faltava o
ar, porque sabia que era esse o único remédio para a asma, muito mais eficaz que
os folhados aguardentados do doutor Cuevas.
Nessa
Quinta-Feira Santa, Severo passeava pela sala preocupado com o escândalo que a filha
tinha dado na missa. Argumentava que só um fanático como o padre Restrepo podia
acreditar em possessos em pleno século vinte, o século das luzes, da ciência e
da técnica, no qual o demónio tinha ficado definitivamente desprestigiado. Nívea
interrompeu-o para dizer que não era essa a questão. O que era grave é que, se
as proezas da filha transcendiam as paredes da casa e o padre começava a
investigar, toda a gente iria saber. Vai começar a chegar gente para a ver como
se ela fosse um fenómeno, disse Nívea. E o Partido Liberal vai para o car…,
rematou Severo, que via o prejuízo que podia ser para a sua carreira política
ter uma possessa na família. Estavam nisto quando chegou a Ama arrastando as
chinelas, com o frufru de saiotes engomados, a anunciar que no pátio estavam
uns homens a descarregar um morto. Assim era. Entraram com uma carroça de
quatro cavalos, ocupando todo o primeiro pátio, pisando as camélias e sujando
de trampa o empedrado reluzente, num turbilhão de pó, num empinar de cavalos e
maldições de homens supersticiosos que faziam gestos contra o mau olhado. Traziam
o cadáver do tio Marcos com toda a sua bagagem. Aquele tumulto era dirigido por
um homenzinho melífluo, vestido de negro, de labita e chapéu demasiado grande,
que iniciou um discurso solene para explicar as circunstâncias do caso, mas que
foi brutalmente interrompido por Nívea, que se lançou sobre o ataúde empoeirado
que continha os restos do seu irmão mais querido. Nívea gritava que abrissem a
tampa, para o ver com os próprios olhos. Já em ocasião anterior havia sido
encarregada de o enterrar, e por isso mesmo tinha o direito de duvidar que dessa
vez fosse verdadeira a sua morte. Os seus gritos atraíram a multidão de criados
da casa e todos os filhos, que acudiram correndo ao ouvir o nome do tio
pronunciado com lamentações de luto». In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos,
1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, Isabel Allende, Literatura, O Saber,