«(…) O bergantim atingira, na sua rota, o ponto em que me era forçoso abandoná-lo para continuar a viagem, e, aproveitando um cúter inglês, única embarcação que havia no porto, segui caminho até ao Rio de Janeiro. Previa o risco iminente que corria de ser considerado prisioneiro de guerra. Por outro lado, porém, não podia por mais tempo permanecer estacionado na vila de Santos, onde podia passar-se um ano sem que arribasse navio nacional ou estrangeiro. Com três dias de navegação fundeamos na baía do Rio, e logo tivemos a visita regulamentar. Informado o seu chefe, da minha procedência, voltou imediatamente a participar ao Governo a minha chegada. Pelas providências que este tomou, vim saber que se dava à minha pessoa grande importância, pois que no mesmo momento fui mandado chamar pela própria falua da visita, e conduzido por um ajudante-de-ordens perante o general comandante da praça, o qual, depois de amplo interrogatório, me despediu com a única ressalva de não sair da cidade sem expressa permissão sua. Com semelhante disposição, confirmaram-se meus receios e previsões, e vi-me reduzido, na minha opinião, à triste sorte de prisioneiro. Assim permaneci coisa de um mês, até que se apresentou, com dois navios de linha e outras embarcações menores, o contra-almirante Smith, que tendo recomendado a seu imediato, o comodoro Moor, que escoltasse a Família Real de Portugal até ao Rio de Janeiro, ficara cruzando diante da barra do porto de Lisboa, a fim de observar e tomar conhecimento das operações do general Junot e compenetrar-se dos objectivos e planos que este formava acerca de Portugal.
Dois dias depois da chegada do
contra-almirante Smith, este me mandou, por intermédio do seu
ajudante-de-ordens, Carol, solicitar instantaneamente tivesse a bondade de ir a
bordo do seu navio, sem nada adiantar-me quanto ao objecto da entrevista que
desejava. Mais a necessidade que a curiosidade decidiu-me a comparecer perante
sir Sidney Smith, que me recebeu, na antecâmara de seu navio, com uma
amabilidade e cortesia pouco comum em pessoas de sua carreira e categoria,
ainda mais quando estão dominando, de suas fortalezas marítimas, a todos que
encontram no seu caminho, ou nos lugares em que têm arvorado seu pavilhão,
atitude que, geralmente, deixa de ser ameaçadora, para converter-se em
fulminante. Depois de feitos os primeiros cumprimentos, ofereceu-me uns
periódicos para que me entretivesse com sua leitura enquanto voltava para
despedir-se do núncio de Sua Santidade, monsenhor Caleppi, que em companhia de
dois portugueses tinha ido felicitá-lo por sua feliz chegada. Livre já das
visitas de cerimónia, fez-me entrar no camarote, e iniciou a conversa
perguntando-me acerca da situação do Rio da Prata, a saber: a respeito da
opinião pública, número de tropas, meios e recursos com que podia contar o
general Liniers para sua defesa, e se, quando saí de Buenos Aires, ali se temia
que voltassem pela terceira vez os ingleses a conquistá-la. Minha resposta a
todos esses quesitos foi um tanto exagerada a favor do general Liniers, de quem
disse ter à sua disposição uns vinte mil homens, porque, após a última derrota
experimentada pelos ingleses, se engrossaria o exército espanhol com tropas
mandadas vir de todas as províncias, e que o aumentariam ainda reforços que se
esperavam do vice-rei de Lima. Vi, pela fisionomia de Smith, que essa notícia lhe
era pouco agradável; não obstante, continuou seu interrogatório apresentando-me
um plano de toda a costa do vice-reinado de Buenos Aires, para que lhe
indicasse qual o ponto que, na minha opinião, era o mais qualificado e
favorável a um desembarque de tropas. Respondi-lhe ser essa matéria bastante
estranha a meus conhecimentos, e que, mesmo quando possuísse alguns, sempre
seriam muito inferiores, por uma razão natural, ao de um chefe de primeira
ordem da Marinha Real Inglesa.
Sorriu com a resposta; e
disse-me, então, francamente, que o objectivo de sua vinda era o de tentar,
pela terceira vez, a conquista de Buenos Aires, para a qual se estava
preparando uma grande divisão nos portos da Inglaterra. Já se passara algum
tempo nessa conversação, e julgando ter satisfeito seus desejos, quis
despedir-me, mas instou muito comigo para que o acompanhasse no jantar. Os
ingleses costumam servir-se da mesa para arrancar dos convivas o que convém a
seus interesses. Nessa ocasião, tinha de agir com a maior circunspecção, para
ficar sempre senhor de mim mesmo e medir bem as palavras». In José Presas, Memórias Secretas
de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013,
ISBN 978-857-018-271-5.
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JDACT, José Presas, Literatura, Carlota Joaquina, Brasil,