«(…) Qual o intuito de José Presas escrevendo as Memórias secretas de Dona Carlota Joaquina? Na verdade, o aventureiro catalão só teve em mira cobrar-se dos seus serviços como secretário particular e fomentador da intriga do Prata. Escreveu esta obra com o intuito premeditado de fazer revelações indiscretas e dar a entender à então rainha viúva de Portugal que poderia ir mais longe ainda, relatando por miúdos factos a que faz alusões veladas e remotas. Em suma: tentava uma chantagem em grande estilo contra a antiga senhora e ama, cujas veleidades políticas animara, a fim de melhor fazer valer os seus serviços e justificar a permanência a seu lado. Época pitoresca era essa, em que os reis e rainhas colocavam acima do seu poder pessoal o seu confessor, temerosos de uma omissão, punível pela justiça divina, a ponto de escreverem suas confissões completas que, imprudentemente, deixavam ao alcance dos seus áulicos, capazes de comerciar com esses segredos, exigindo dinheiro em troca de silêncio! A parte final do livro de Presas, a conclusão, o arremate dessa obra que seria um simples pano de amostra, uma indicação do muito que ele sabia e do quanto seria perigoso deixar a rainha de atendê-lo, insinua com tanta arte e habilidade quando era possível em tão escuso negócio a premeditada chantagem: Medite também sobre as fatais consequências que lhe poderia ter acarretado, pondo em mãos do próprio príncipe (João) a confissão geral que, involuntariamente, e por esquecimento, me entregou..., e que devolvi, como devia, com os demais papéis, sem dar-me por entendido de que a havia visto e lido, etc. Finório como era, se naquela época já estivessem em uso as cópias fotostáticas, Presas teria, sem dúvida, muito inocentemente, tirado fac-símile das confissões de dona Carlota, como por certo havia tirado cópia manuscrita dos trechos mais comprometedores...
Em começos do ano de 1808, precisando voltar da América do Sul para Espanha, embarquei-me num bergantim português que partia de Buenos Aires para a costa do Brasil com destino ao porto da vila de Santos. Foi ali que tive a primeira notícia de que os exércitos francês e espanhol tinham invadido Portugal, e de que o general Junot, comandante do primeiro, se havia apoderado de Lisboa, sem ter conseguido impedir a fuga da Família Real, que, sob a protecção e guarda da esquadra inglesa, capitaneada pelo contra-almirante sir Sidney Smith, se refugiara nos seus Estados do Brasil. Ao mesmo tempo que os franceses se assenhoreavam de Lisboa, os espanhóis, às ordens do general Tarauco, ditavam leis na opulenta e importante cidade do Porto, e, operando ambos os exércitos com estreita aliança, tinham subjugado toda a Lusitânia, oprimindo extraordinariamente a todos os habitantes com o peso insuportável de uma guerra injusta e assoladora. O auxílio, que o governo da Espanha prestava com tanta generosidade aos projectos do imperador Napoleão nesta empresa, comprometeu a segurança pessoal de todos os espanhóis, que na ocasião se achavam nos domínios sujeitos ao príncipe regente de Portugal, o qual, pelas consequências de uma justa represália, não podia deixar de considerar como inimigos os súbditos espanhóis. Essa a sorte que me era lícito esperar desde que pusesse o pé em terra no porto de Santos. Não obstante, nenhum estorvo ali sofri, quer de parte do governo, quer da polícia». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.
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