Cambridge, Inglaterra
«Deixe-me explicar o que acontece,
sussurrou o agressor, calmamente. Deslizei a faca por essa finíssima pele até ao
coração que batia. Agora o senhor já não sente a lâmina mover-se, mas dividi o
coração quase na metade exacta. O ferimento no peito é tão perfeito que pouco
sangue se espalhará, mas o coração continuará a bombear por um instante,
enchendo a cavidade peitoral com suficiente sangue, pelo menos em teoria, para
fazer o torso, na verdade, explodir. Não tenha medo. Estará morto quando isso
acontecer. Mas tornará muito difícil a identificação do sangue. O capuz do
monge escorregou para trás e revelou um rosto de frio brilho. Tinha os olhos
cor de folhas verdes novas, cabelos grisalhos encaracolados, desgrenhados e tempestuosos
ao redor da cabeça. As feições pareciam mais esculpidas que fixas.
Eu o conheci... anos atrás...
Giordano!, conseguiu dizer Jacob. Sim, respondeu Giordano, tranquilizando-o. Por
isso o matei: não devo mais ser Giordano. Preciso desaparecer de todos
os registos, e o senhor é um registo vivo de minha existência. De agora em
diante, serei chamado de Timon, entenda. Jacob lutou para falar mais.
Não tema, interrompeu-o o
assassino. O senhor dedicou a Deus e a seus amos na família Sidney uma boa vida
de serviço. Tem a alma prostrada agora... Eu a sinto... A espera do salto para
o céu. Lá encontrará bem-aventurança. Foi um homem bom.
O beco era curto, o espaço de
três cavalos, pedras sob os pés, gelo entre duas lojas ruidosas naquela parte
mais pobre de Cambridge. A primeira, de um açougueiro, emprestava o ar de
fétida putrefacção. A outra, o casebre de um funileiro. De toda a parte,
pendiam panelas baratas.
Jacob se esquecera de onde se
encontrava. Não conseguia sentir nada. Apenas o opressivo aroma de noz-moscada
que se desprendia do agressor. Talvez se pergunte por que escolhi este método
de execução, continuou Giordano, a lâmina ainda no peito do velho. Eu tinha
ternura pelo senhor, e meus estudos indicaram que não se sente nada com esse
ferimento. Os antigos médicos gregos nos dizem que, quando um homem sofre um
repentino choque dessa magnitude, o corpo recusa-se a acreditar, e todos os
sentidos se fecham por um breve tempo. O senhor logo dormirá, sem sentir mais
que a primeira afronta do punhal. Ofereci-lhe, Jacob, a única bondade que tenho
a dar numa circunstância como esta.
O velho revirou os olhos. Ah. Timon
retirou o punhal. A vítima cambaleou em direcção às pedras do beco no momento
em que o assassino imaginou ver uma erupção de vapor branco projectar-se para
cima. Adeus, Jacob, disse o assassino ao vapor. Eu, ai de mim, não tornarei a
vê-lo. Passaremos à eternidade em diferentes acomodações. Nesse momento, um
cachorro saltou das sombras, liberado por uma porta lateral do açougue.
Pegue-o, garoto!, grunhiu uma
voz. Ele matou Jacob. O animal saltou sobre a garganta de Timon. Sem reflectir,
ele girou o punhal para a frente, enterrou-o fundo e cortou a garganta do
animal, quase degolando-o. A carcaça agonizante continuou a voar até cair no chão
ao lado da vítima. O assassino avançou três longos passos com toda a calma e
encontrou o açougueiro agachado nas sombras, com os olhos saltando das órbitas.
Sem
uma palavra, agarrou-o pelo avental e atirou-o para trás pela porta lateral,
loja adentro. O homem bateu numa mesa de madeira e caiu encolhido no piso. Como
uma sombra fugaz, Timon voltou ao beco para agarrar pelo rabo do cachorro morto
e arrastá-lo até ao açougue. Vai ser um pouco desconfortável, avisou, muito
tranquilo, e jogou mais uma vez o capuz para trás. Logo o açougueiro começou a
rastejar de costas». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei
James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.
Cortesia de Prumo/JDACT
JDACT, Phillip Depoy, Literatura,