«Era mais que certo que, ao bater
à porta da Casa Fernando Pessoa, iria revolucionar a minha vida e a do poeta para
toda a eternidade. Afinal, a ressurreição não está à mão de qualquer ser humano
que a reclame, nem o avanço da ciência a tornou mais fácil. Não me estou a referir
ao voltar à vida através de bruxarias, complexas cirurgias, processos de congelamento
ou outros progressos da tecnologia, daqueles que se vão ouvindo de vez em quando
nas notícias.
Não, o meu caso é diferente e mais
difícil de compreender, mesmo que para o aceitar seja necessário crer em alguma
coisa. Porque para mim foi um passo dado sem dificuldade, quase natural, como o
de uma criança que começa a caminhar. Estou certo, repito, de que ao bater à porta
da Casa Fernando Pessoa irei revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a
eternidade. Afinal, o que vou dizer aos que estão resguardados pelas paredes grossas
daquela construção e que mandam na minha antiga morada não é o que escutam todos
os dias da boca dos visitantes que vão à procura das memórias de Fernando, nem
o que querem ouvir sobre o Pessoa que guardam oficialmente.
E como não desejo ser aquele
sobre quem existam dúvidas, tenho de lhes dizer toda a verdade, logo desde o
princípio, convencendo-os de que não sou um turista de passagem que apareceu neste
ano de 2010 por acaso, ou talvez um louco que decidiu fazer uma habilidade especial.
Antes, devo mostrar-lhes que a eternidade das palavras que têm por missão
preservar não está, como pensam, numa arca meio cheia, mas na parte meio vazia
da qual só eu tenho a chave.
Decerto que a novidade que lhes vou
dar não será a que esperam, mesmo que, passada a previsível grande tempestade, devam
ficar satisfeitos com a revelação. Não me custa pensar que assim será, porque os
últimos dias têm mostrado como é uma experiência complicada esta de certificar que
o poeta não morreu para sempre.
Que não é como o Luís de Camões, morto
e enterrado sabe-se lá aonde e cuja obra ficou esquecida por muito mais tempo do
que a de Pessoa. De uma coisa estou certo antes de bater à porta da Casa e de lhes
dizer ao que vou: não contem comigo para contar uma mentira. Tudo o que vai
acontecer nos dias que se seguirão foi montado aos poucos, como se eu observasse
uma casa a crescer desde as fundações até ao tecto. Foi assim que ficou
definida a minha missão, como se fosse uma segunda vida que Vicente Guedes
dá a Fernando Pessoa, depois de ter sido um heterónimo quase esquecido e substituído
pelo Bernardo Soares no Livro do Desassossego.
O que eu disse ao porteiro não o
surpreendeu. Olhou de alto a baixo e reconheceu-me. O que seria de esperar, porque
eu era exactamente como me têm descrito; bigode, nariz circunspecto, fato negro
e chapéu, tudo a combinar com a imagem das fotografias.
Bom dia, senhor Fernando Pessoa. Como
tem passado? Diria mesmo que foi mais educado do que eu poderia esperar.
Poderia ter respondido torto e achar
que vinha reclamar o que era meu, deixando-o sem emprego. Ou pensar que,
portando-se bem, o manteria, pois nenhum poeta famoso dispensa um funcionário para
todo o serviço, como ele parecia poder vir a ser. Portanto, fiquei satisfeito com
a forma como decorreu a primeira situação, mesmo que tivesse antevisto vários
outros desfechos.
Pedi-lhe, então, que me mostrasse
a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão
que antes nos separava e deu início à visita guiada». In João Céu e Silva, A Segunda
Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-
Cortesia de AGePazEditores/JDACT
JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,