Salamanca
«Batem com força à porta de entrada,
acordando Ari das suas divagações. Ouve vozes no átrio, pousa a pena e levanta-se,
para dar com o Pai a tentar apoiar um homem velho e pequeno, que se arrasta a custo
no outro lado do átrio. Assim que Ari vê os seus rostos cor de cinza, sabe que aconteceu
mesmo qualquer coisa especial, e que hoje não será um dia igual aos outros.
Pai! Rabi Isaac!, grita, correndo
em seu auxílio. O que se passa? O idoso rabi faz uma careta de dor quando o sentam
com cuidado numa cadeira da cozinha. Tem a respiração ofegante e o rosto,
coberto por tufos de barba branca, reluz brandamente sob uma fina camada de suor.
Ari vai buscar água e leva o copo aos lábios do rabi. Ele bebe devagar, parando
entre goles para balbuciar em voz baixa. Engasga-se e gagueja como se ainda tivesse
qualquer coisa do pequeno-almoço presa na garganta. Finalmente, numa voz rouca
do esforço, sai-lhe uma palavra de um jacto. Exílio!
As quatro sílabas ficam suspensas
no ar. Atónito, Ari agarra no braço do Pai e sonda-lhe o rosto. Ele sabe pela
Torá que o exílio é o caminho para a redenção. Então, porque se mostra o rabi
tão receoso?
Não faz sentido! De certeza que o
Pai, com todo o seu saber, vai conseguir explicar! Mas os olhos do Pai, normalmente
calmos, estão agora vítreos. Tem as feições de pedra e o sangue fugiu-lhe da face,
como se tivesse uma dor de dentes. Também está a ter dificuldade em mover o queixo.
Saiu um édito, balbucia, com a voz
pesada de desespero. Temos três meses para ir embora. O choque invade Ari de repente.
O mesmo choque que sentiu quando era criança, quando caiu da ponte para o rio.
A torrente engole-o, tirando-lhe o ar dos pulmões. Não consegue respirar. Sente
o sangue a latejar-lhe nos ouvidos. Está a afogar-se, vira-se para o Pai, à procura
de ajuda, mas ele já se deixou cair como uma trouxa mal feita na cadeira ao lado
do rabi.
Samuel deve ter ouvido toda aquela
agitação, porque está encostado à porta, a fungar e a assoar-se com um lenço húmido.
Apoiando-se na mesa de madeira acabada de esfregar, Ari olha de novo para o
Pai, à espera de uma orientação. Mas o Pai tem os olhos fechados e uma expressão
de descrença no rosto, como se tivesse acabado de descobrir que uma das leis universais
que tanto ama tivesse sido violada.
Uma onda de vergonha apodera-se de
Ari. E se os céus o ouviram? E se tudo aquilo for culpa dele? Desejara que
acontecesse qualquer coisa de empolgante. Esperara que houvesse uma mudança. Não
vale a pena tentar negá-lo. A culpa é mesmo dele. Devia ter estado a trabalhar nos
seus cálculos. Em vez disso, rezara para
que acontecesse qualquer coisa de extraordinário. E agora tinha acontecido. Mas
era uma coisa tão terrível que ninguém no seu perfeito juízo o teria desejado alguma
vez!
Inclina-se para a frente e sussurra
ansiosamente ao ouvido do pai: Pai, a culpa e minha! Sou eu o culpado. Desejei
que acontecesse qualquer coisa especial que mudasse tudo! O Pai ergue os olhos
para ele, espantado. Depois o rosto dele suaviza-se, e os seus olhos cinzentos
enchem-se de lágrimas. Não! A culpa não é tua, Art, diz ele, estendendo a mão e
pegando-lhe no braço. Estavas só a sonhar outra vez. Ainda nem sequer és um homem.
Como poderia a culpa ser tua?
O ar volta a entrar nos pulmões de
Ari. O Pai tem razão. Como poderia ser culpa dele? Um rapaz de 14 anos? Quase 15!
As suas ideias arrebatadas? Era impossível, mas então de quem era a culpa? Quem
faria uma coisa destas? Deve haver um engano qualquer. As lágrimas descem pelo rosto
do Pai sem que ele se aperceba. Tem uma expressão perplexa. No silêncio da
cozinha, o rabi é o primeiro a falar.
Não há engano nenhum, diz, com a voz
estrangulada. O inquisidor da rainha proclamou o édito na praça ainda esta manhã.
Está uma cópia afixada na porta da catedral. Mas porquê?, pergunta Ari. É o castigo
de Deus. Mas que mal é que nós fizemos? Com os olhos vermelhos, Samuel aperta o
lenço na mão.
Foram o rei e a rainha que assim planearam,
diz o rabi, passando uma mão cansada pela face. Ari vê uma luz de esperança
acender-se no rosto do Pai. A rainha, diz ele, com os lábios a tremer. Talvez eu
consiga uma audiência na Corte. Pedir que atenda ao nosso caso. Por causa do meu
trabalho...
Não se trata só do rei e da rainha,
diz o rabi Isaac. Trata-se do inquisidor-mor e da Santa Irmandade, com todo o poder
da Igreja Católica a apoiá-los.
O Pai passa os dedos trémulos pela
barba. Tosse e tenta de novo. Talvez a rainha abra uma excepção para nós... Não,
Abraão, não haverá excepções. Tem razâo. O Pai torce as mãos; desapareceu-lhe a
luz da face. Tenho andado a estudar as constelações e vi os sinais que vêm dos
céus.
Coragem, diz o rabi Isaac, reunindo
as suas forças. Pense em das as tempestades celestiais que já nos caíram sobre a
cabeça. Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido
para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe. Há
indícios de grandes mudanças, conjunções dos Planetas que significam destruição
e revolta. Nunca acreditei nisso até agora.
Lembra-te,
Abraão, diz o rabi. Não há nenhum Planeta que tenha poderes para nos governar. Não.
A voz do Pai adquire uma ênfase súbita. Vem aí o fim do mundo. Isto é o Apocalipse».
In
Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,