quarta-feira, 13 de março de 2024

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe»

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Salamanca

«Batem com força à porta de entrada, acordando Ari das suas divagações. Ouve vozes no átrio, pousa a pena e levanta-se, para dar com o Pai a tentar apoiar um homem velho e pequeno, que se arrasta a custo no outro lado do átrio. Assim que Ari vê os seus rostos cor de cinza, sabe que aconteceu mesmo qualquer coisa especial, e que hoje não será um dia igual aos outros.

Pai! Rabi Isaac!, grita, correndo em seu auxílio. O que se passa? O idoso rabi faz uma careta de dor quando o sentam com cuidado numa cadeira da cozinha. Tem a respiração ofegante e o rosto, coberto por tufos de barba branca, reluz brandamente sob uma fina camada de suor. Ari vai buscar água e leva o copo aos lábios do rabi. Ele bebe devagar, parando entre goles para balbuciar em voz baixa. Engasga-se e gagueja como se ainda tivesse qualquer coisa do pequeno-almoço presa na garganta. Finalmente, numa voz rouca do esforço, sai-lhe uma palavra de um jacto. Exílio!

As quatro sílabas ficam suspensas no ar. Atónito, Ari agarra no braço do Pai e sonda-lhe o rosto. Ele sabe pela Torá que o exílio é o caminho para a redenção. Então, porque se mostra o rabi tão receoso?

Não faz sentido! De certeza que o Pai, com todo o seu saber, vai conseguir explicar! Mas os olhos do Pai, normalmente calmos, estão agora vítreos. Tem as feições de pedra e o sangue fugiu-lhe da face, como se tivesse uma dor de dentes. Também está a ter dificuldade em mover o queixo.

Saiu um édito, balbucia, com a voz pesada de desespero. Temos três meses para ir embora. O choque invade Ari de repente. O mesmo choque que sentiu quando era criança, quando caiu da ponte para o rio. A torrente engole-o, tirando-lhe o ar dos pulmões. Não consegue respirar. Sente o sangue a latejar-lhe nos ouvidos. Está a afogar-se, vira-se para o Pai, à procura de ajuda, mas ele já se deixou cair como uma trouxa mal feita na cadeira ao lado do rabi.

Samuel deve ter ouvido toda aquela agitação, porque está encostado à porta, a fungar e a assoar-se com um lenço húmido. Apoiando-se na mesa de madeira acabada de esfregar, Ari olha de novo para o Pai, à espera de uma orientação. Mas o Pai tem os olhos fechados e uma expressão de descrença no rosto, como se tivesse acabado de descobrir que uma das leis universais que tanto ama tivesse sido violada.

Uma onda de vergonha apodera-se de Ari. E se os céus o ouviram? E se tudo aquilo for culpa dele? Desejara que acontecesse qualquer coisa de empolgante. Esperara que houvesse uma mudança. Não vale a pena tentar negá-lo. A culpa é mesmo dele. Devia ter estado a trabalhar nos seus  cálculos. Em vez disso, rezara para que acontecesse qualquer coisa de extraordinário. E agora tinha acontecido. Mas era uma coisa tão terrível que ninguém no seu perfeito juízo o teria desejado alguma vez!

Inclina-se para a frente e sussurra ansiosamente ao ouvido do pai: Pai, a culpa e minha! Sou eu o culpado. Desejei que acontecesse qualquer coisa especial que mudasse tudo! O Pai ergue os olhos para ele, espantado. Depois o rosto dele suaviza-se, e os seus olhos cinzentos enchem-se de lágrimas. Não! A culpa não é tua, Art, diz ele, estendendo a mão e pegando-lhe no braço. Estavas só a sonhar outra vez. Ainda nem sequer és um homem. Como poderia a culpa ser tua?

O ar volta a entrar nos pulmões de Ari. O Pai tem razão. Como poderia ser culpa dele? Um rapaz de 14 anos? Quase 15! As suas ideias arrebatadas? Era impossível, mas então de quem era a culpa? Quem faria uma coisa destas? Deve haver um engano qualquer. As lágrimas descem pelo rosto do Pai sem que ele se aperceba. Tem uma expressão perplexa. No silêncio da cozinha, o rabi é o primeiro a falar.

Não há engano nenhum, diz, com a voz estrangulada. O inquisidor da rainha proclamou o édito na praça ainda esta manhã. Está uma cópia afixada na porta da catedral. Mas porquê?, pergunta Ari. É o castigo de Deus. Mas que mal é que nós fizemos? Com os olhos vermelhos, Samuel aperta o lenço na mão.

Foram o rei e a rainha que assim planearam, diz o rabi, passando uma mão cansada pela face. Ari vê uma luz de esperança acender-se no rosto do Pai. A rainha, diz ele, com os lábios a tremer. Talvez eu consiga uma audiência na Corte. Pedir que atenda ao nosso caso. Por causa do meu trabalho...

Não se trata só do rei e da rainha, diz o rabi Isaac. Trata-se do inquisidor-mor e da Santa Irmandade, com todo o poder da Igreja Católica a apoiá-los.

O Pai passa os dedos trémulos pela barba. Tosse e tenta de novo. Talvez a rainha abra uma excepção para nós... Não, Abraão, não haverá excepções. Tem razâo. O Pai torce as mãos; desapareceu-lhe a luz da face. Tenho andado a estudar as constelações e vi os sinais que vêm dos céus.

Coragem, diz o rabi Isaac, reunindo as suas forças. Pense em das as tempestades celestiais que já nos caíram sobre a cabeça. Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe. Há indícios de grandes mudanças, conjunções dos Planetas que significam destruição e revolta. Nunca acreditei nisso até agora.

Lembra-te, Abraão, diz o rabi. Não há nenhum Planeta que tenha poderes para nos governar. Não. A voz do Pai adquire uma ênfase súbita. Vem aí o fim do mundo. Isto é o Apocalipse». In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

 Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,