quarta-feira, 20 de março de 2024

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «Depois de tanta veterania, algum privilégio havia de lhe calhar. Conversaram com gosto, as notícias do café vinham com optimismo. Estavam de costas voltadas para a montanha de sacas de juta…»

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26 de Março de 2021

«Foi nesse momento que, dentro daquela primavera, dobrou ligeiramente os joelhos até achar uma abertura entre verde e cor-de-rosa e, a partir desse mirante, avistou o motorista. Precisou de dar alguns minutos, não queria aparecer logo, mas faltou-lhe paciência para grandes esperas. Agradeceu em silêncio pela preferência matutina, por ter chegado cedo ao circuito de manutenção, antes de sombras fugidias que o julgassem, e saiu do loendro muito aprumado, como se viesse a caminhar no seguimento de uma andança séria, enquanto esticava e encolhia os braços para a frente.

Sem explicações, entrou no automóvel, sentou-se, bebeu de uma pequena garrafa de água, muito digno. Não foi preciso dizer nada ao motorista, que regressou à segurança de saber para onde iam em seguida. As ruas da vila apresentavam nova animação, motorizadas, gente que aparecia à janela, cães a darem algum passeio, arrumados à sombra das paredes.

Muito bem-disposto, passou o portão da torrefação Camelo, sorriso aberto, dentição luminosa. A sexta-feira sentia-se da forma subtil com que os dias da semana se distinguem uns dos outros, o tempo roda. As pás giravam sobre os grãos de café, arrefeciam-nos depois da torra, como se estivessem ali para fazer uma demonstração prática dessa qualidade cíclica do tempo. Mas faltava vontade para teorias, o trabalho estava já em plena acção, conforme se desejava. O encarregado largou logo qualquer coisa que podia esperar e, lampeiro, avançou na direcção do senhor Rui, que também seguia na direcção dele. O que diziam foi abafado pelo afã das máquinas, falavam de assuntos que pouco interessariam a quem não partilhasse o brilho nos olhos de um e de outro. O patrão, claro, tinha a sua história, as lembranças que bastas vezes lhe cruzavam a ideia, em pequeno a aprender com o pai e com o tio, e todas as suas idades, a decidir cada evolução daqueles armazéns, até ser um homem de oitenta e nove anos, até ser aquela a sua empresa de estimação, pequena entre outras empresas do grupo que, àquela mesma hora, eram preocupação da sua descendência.

Depois de tanta veterania, algum privilégio havia de lhe calhar. Conversaram com gosto, as notícias do café vinham com optimismo. Estavam de costas voltadas para a montanha de sacas de juta, as figuras dos dois homens recortadas nesse fundo. Não se tratava da pilha de sacos que está logo à esquerda de quem entra, mas sim os outros, os que estão um pouco mais à frente, à direita, café do Uganda, esse nome gravado nos sacos: Uganda Natural Robusta Coffee. O fim da conversa foi assinalado por alguns pequenos passos e, logo a seguir, duas ou três passadas rijas. A propósito de algum detalhe, o senhor Rui disse uma graça a dois rapazes com farda da fábrica, rapazes de cinquenta e tal anos, calças castanhas, camisola vermelha, grená, cor de romã madura, boina na cabeça, óculos. Riram-se os dois, como era próprio, um deles acrescentou um comentário conveniente e tratou-o por senhor comendador.

Já na sala de embalagem, três mulheres cumprimentaram-no com a deferência de uma sílaba pouco articulada, talvez sem consoantes, a mesma que usavam em todas as manhãs que o senhor Rui decidia entrar ali. À margem dessa etiqueta, a máquina repetia a sua música, a sua sequência infinita, os pacotes chegavam em fila, altivos, novos e brilhantes, deslumbrados, a verem o mundo pela primeira vez a partir de uma passadeira de metal e, por fim, encontravam as mãos da mulher que os alinhava no interior de uma caixa de papelão, prontos para se lançarem numa viagem que ainda desconheciam. O senhor Rui cumprimentou as funcionárias também com uma sílaba, mas afinada por outra nota». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,