quinta-feira, 21 de março de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… secado o suor da testa e dos ombros e desabotoado o soutien para que não a incomodasse, deixando que fosse ela quem decidisse mantê-lo posto, embora solto, ou tirá-lo»

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«A mulata não usava relógio nem anéis. Pensei que a figura daquele indivíduo devia ter-lhe sido só um pouco visível durante todos aqueles minutos, ao contrário da minha, inteiramente visível por assomar e estar apoiada na balaustrada imóvel. Agora era o inverso, a minha se apagara de repente e era invisível, em compensação era o homem que eu não via, como tampouco.

Luisa, continuava dando-lhe as costas. Talvez aquele sujeito tivesse ido para trás e para a frente, sempre sem abrir a janela da sacada, conforme se visse ou não focalizado pelos olhos cor de limão da mulher da rua, por seu olhar míope e inofensivo. Estivera brincando com a vantagem de se deixar ver e se esconder, nenhuma das duas coisas, e ela tinha razão portanto, a pessoa com quem marcara encontro já havia subido ao hotel sem se incomodar em avisá-la, para vê-la esperar em frente e na distância, para contemplá-la em seus breves e doridos passeios de um lado para o outro, depois em seu trôpego avanço e em sua queda, calçar-se, como também eu tivera a oportunidade de observá-la.

O curioso foi que a reacção de Miriam não teve nada a ver com a que dedicara a mim ao tomar-me por outro, por aquele homem de braços fortes, peludos, compridos e relógio e aliança de canhoto. Ao vê-lo já com certeza, ao ver quem estivera esperando tanto e ouvi-lo chamá-la, não fez nenhum gesto nem gritou nada. Não o insultou nem o ameaçou nem lhe disse Vou te apanhar ou Eu te mato com o braço nu e os dedos rápidos, talvez porque, ao contrário de mim enquanto fui ele para ela, ele falara com ela ou dissera seu nome. A expressão da mulher mudou: foi de alívio, por um instante, e com prontidão, quase com um agradecimento sem destinatário, com mais graça em seus passos do que até então mostrara (como se de repente caminhasse descalça e suas pernas não fossem tão encorpadas), acabou de percorrer o trecho que a separava do hotel e entrou nele com sua grande bolsa preta agora mais leve, desaparecendo assim de meu campo visual sem me dizer mais palavras, reconciliada com o mundo durante aqueles passos. A janela da sacada à minha esquerda tornou a se fechar e logo tornou a se abrir para ficar entreaberta, como se o vento a tivesse empurrado ou o homem tivesse pensado melhor um segundo depois de fechá-la (pois não ventava) e não soubesse bem como ia querer mantê-la quando a mulher já estivesse com ele em cima, em breve (a mulher devia estar subindo a escada). Então eu, finalmente (mas passara muito pouco tempo, de modo que Luísa ainda devia sentir-se recém-acordada), abandonei meu posto, acendi o abajour do criado-mudo e me aproximei solícito da cabeceira de nossa cama, solícito mas atrasado.

Esse atraso é para mim inexplicável e já então o lamentei muito, não porque tivesse qualquer consequência, mas pelo que pensei que podia significar, num excesso de escrúpulo e zelo. E, embora seja certo que eu tenha associado de imediato esse atraso marital ao primeiro mal-estar de que falei e ao facto de que desde nosso casamento me fosse mais difícil pensar em Luísa (quanto mais corpórea e contínua, mais relegada e remota), o aparecimento do segundo mal-estar que também mencionei não se deveu à minha contemplação lacônica da mulata e à minha brevíssima negligência, mas antes ao que veio depois, isto é, ao que aconteceu quando eu já havia atendido Luísa, secado o suor da testa e dos ombros e desabotoado o soutien para que não a incomodasse, deixando que fosse ela quem decidisse mantê-lo posto, embora solto, ou tirá-lo. Com a luz, Luísa reanimou-se um pouco, quis beber água e, ao beber um pouco, sentiu-se melhor e, ao sentir-se um pouco melhor, dispôs-se a falar um pouco e, quando se acalmou e sentiu os lençóis menos pegajosos e se viu mais composta com a cama em ordem, e sobretudo compreendeu e se acostumou à ideia de que já era noite, de que, quisesse ou não, o dia terminara para ela sem possibilidade de continuar a fazer o que quer que fosse e de que só lhe restava tentar não fazer caso de sua doença e sepultá-la no sono até a manhã seguinte, quando presumivelmente tudo voltaria à normalidade algo anómala de nossa viagem de recém-casados e seu corpo estaria em ordem e seria outra vez corpóreo, então lembrou-se do meu descuido que seguramente ela não havia percebido como tal, ou o que recordou foi que eu tinha dito Não se preocupe a uma pessoa desconhecida que estava na rua e que de lá haviam subido vozes e gritos ouvidos no sono ou em seu torpor, que a tinham despertado e talvez assustado». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,