«Com quem você estava falando antes?, perguntou-me outra vez. Não vi motivo para não lhe dizer a verdade, no entanto tive a sensação de não o fazer ao fazê-lo. Nesse momento eu tinha na mão uma toalha com a ponta húmida e me dispunha a refrescar-lhe o rosto, o pescoço, a nuca (seu cabelo comprido e em desalinho tinha se grudado, e alguns fios soltos lhe atravessavam a testa como se fossem finas rugas vindas do futuro para ensombrecê-la um instante).
Com ninguém, com uma mulher que me
confundiu. Confundiu nossa sacada com a do lado. Devia ter vista ruim, só quando
chegou bem perto viu que eu não era o homem com quem marcara encontro. Ali. E
apontei para a parede que agora nos separava de Miriam e do homem. Nessa parede
havia uma mesa e em cima dela um espelho no qual, conforme nos mexêssemos ou
nos erguêssemos, podíamos nos ver da cama.
Mas por que gritava? Pareceu-me
que gritava muito. Ou não sei se sonhei. Estou com muito calor. Deixei a toalha
ao pé da cama e acariciei-lhe várias vezes a face e o queixo arredondado. Seus
grandes olhos escuros fitavam ainda nebulosos. Se tivera febre, esta já havia
baixado. Não posso saber, porque na realidade não era comigo que gritava, mas
com o outro por quem me tomou. Sabe lá o que se terão feito um ao outro.
Enquanto me ocupava de Luísa eu tinha ouvido (mas sem prestar atenção, porque
atendia Luísa e estava fazendo ao mesmo tempo várias coisas e indo do quarto ao
banheiro e do banheiro ao quarto) como os saltos chegavam até a porta ao lado e
esta se abria sem que batessem nela, e a partir do leve rangido (foi rápido) e
da suave batida ao se fechar de novo (que foi muito lenta) apenas um murmúrio
indistinto, sussurros de palavras que não podiam se distinguir apesar de
pronunciadas em minha língua e de, segundo o som de pouco antes, a sacada deles
ter ficado entreaberta e eu não ter fechado a nossa. À preocupação com meu
indevido atraso somou-se outra, minha preocupação com a sensação de pressa.
Senti que tinha pressa não apenas para tranquilizar Luísa, esticar-lhe os
lençóis e paliar na medida do possível os efeitos de sua doença efêmera, mas
também para que não me fizesse mais perguntas e dormisse de novo, pois não
havia tempo para fazê-la participar de minha curiosidade nem ela estava em
condições de se interessar por nada exterior a seu corpo e, enquanto trocávamos
algumas palavras e eu ia ao banheiro molhar a ponta de uma toalha, dava-lhe de
beber e acariciava seu queixo que eu apreciava muito, os pequenos ruídos que eu
mesmo ia fazendo e nossas próprias frases curtas e descontínuas me impediam de
prestar atenção e apurar o ouvido procurando distinguir o murmúrio contíguo,
que eu tinha pressa de decifrar.
E a pressa vinha porque eu tinha
consciência de que o que não ouvisse agora não ia ouvir mais; não ia haver
repetição, como quando você ouve uma fita cassete ou assiste a um vídeo e pode
retroceder, mas cada sussurro não captado nem compreendido se perderia para
sempre. É o que há de ruim no que nos acontece e não é gravado, ou, pior ainda,
nem mesmo sabido nem visto nem ouvido, porque depois não há forma de
recuperá-lo.
O dia em que não estivemos juntos
já não teremos estado juntos, ou o que nos iam dizer por telefone quando nos
ligaram e não respondemos nunca será dito, nunca a mesma coisa nem com o mesmo
espírito; e tudo será levemente diferente ou totalmente diferente por nossa
falta de atrevimento que nos dissuadiu de falar. Mas mesmo se naquele dia
estivemos juntos, ou se estávamos em casa quando nos telefonaram, ou se nos
atrevemos a falar vencendo o temor e esquecendo o risco, mesmo assim nada disso
voltará a se repetir, por conseguinte chegará um momento em que ter estado
juntos será como não ter estado, e ter atendido o telefone será como não o ter
feito, e ter-nos atrevido a nos falar será como ter calado. Até as coisas mais
indeléveis têm uma duração, como as que não deixam vestígio ou nem mesmo
acontecem, e se estivermos prevenidos e as anotarmos ou gravarmos ou filmarmos,
se nos enchermos de recordações e chegarmos até a substituir o acontecido pela
mera constância, registo e arquivamento do que aconteceu, de modo que o que na
verdade ocorra desde o princípio seja nossa anotação ou nossa gravação ou nossa
filmagem, apenas isso, mesmo nesse aperfeiçoamento infinito da repetição
teremos perdido o tempo em que as coisas de facto aconteceram (embora seja o
tempo da anotação); e enquanto procuramos revivê-lo ou reproduzi-lo e fazê-lo
voltar e impedir que seja passado, outro tempo diferente estará acontecendo, e
nele, sem dúvida, não estaremos juntos nem atenderemos nenhum telefonema, nem
nos atreveremos a nada, nem poderemos evitar nenhum crime e nenhuma morte
(embora tampouco venhamos a cometê-los ou a causá-los), porque o estaremos
deixando passar como se não fosse nosso em nossa intenção doentia de que o que
já aconteceu não acabe e retorne». In Javier Marías, Coração Tão Branco,
1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.
Cortesia de RelógioD’Água/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,