sábado, 2 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «… olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter sido. Estava a aproveitar este momento…»

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O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Temos tido muito cuidado com a casa e está tudo em condições, mesmo que às vezes o dinheiro seja curto para as despesas de manutenção. Acho que vai gostar do que lhe vou mostrar e irá ficar surpreendido com as melhorias que os directores têm feito.

Realmente, estava tudo alterado em relação ao tempo em que eu vivera num andar deste prédio da rua Coelho da Rocha. Já lá iam muitos anos, no entanto, reconhecia o lugar com facilidade, pois alguns edifícios mantinham-se como eram na memória, apesar de estarem mais degradados do que nos quinze anos em que habitara no bairro, entre 1920 e 1935. As paredes que antes dividiam os pisos tinham sido destruídas, e o espaço à vista era bem maior. Se me perguntassem, confessaria sem problemas que nunca teria conseguido imaginar que os apartamentos fossem tão capazes de emparedar quem morava dentro deles e apagar-lhe o exterior. Que largueza e amplitude que estas mudanças teriam oferecido aos antigos moradores!

Bem, se morassem cá todos não poderíamos ter feito estas alterações.

O funcionário fora rápido na resposta ao meu comentário, fazendo-me pensar até que ponto este meu regresso não estava encenado na sua cabeça há bastante tempo. Passaria ele os dias a pensar no que me diria, caso eu voltasse a esta casa, ou seria apenas um empregado cuidadoso? Posso dizer que, para o primeiro contacto, estava a ficar com uma boa opinião sobre a Casa e que, se todos os funcionários fossem como este, a instituição estava bem entregue.

Continuámos a visita ao rés-do-chão, sempre com ele à minha frente a mostrar-me a habitação, tendo eu rapidamente desistido de a continuar a reconstituir mentalmente. Encaminhou-me para a escadaria que levava ao primeiro andar e, certo de que iria fazer-me uma surpresa, perguntou se queria subir pelos degraus ou se preferia experimentar o elevador.

Tenho a certeza de que isto é que não estava cá no seu tempo!

Realmente, este regresso à minha última morada era uma surpresa constante. Olhei para os degraus de madeira e contei-os, para confirmar se o seu número se mantinha o mesmo. Com tanta obra feita entretanto... Era a mesma quantidade de degraus, o que me permitia continuar a repetir a contabilidade que executava todos os dias ao chegar a casa. Porque seria que eu contava os degraus, perguntei-me. A questão seria antes o porquê de o fazer neste regresso e de como é que me lembrava desse tique, após quase um século passado? Voltei ao presente devido à pergunta do funcionário e respondi-lhe que preferia subir pelos degraus. Como fazia antigamente, não é?

Respondi-lhe que sim, enquanto reparava nos pormenores de decoração da casa, sempre com a minha imagem espalhada a cada canto. Eram estátuas, frases, poemas e desenhos. Uns meus. uns de outras pessoas sobre mim, mas sempre em torno do mesmo tema: eu. Coisas em que não tinha reparado com tanto cuidado na minha visita anterior à Casa Fernando Pessoa, às escondidas e ainda distante de ser quem vim a ser. O funcionário aproveitava a minha demora para ir explicando o significado do mobiliário novo e contava-me a sua história, mesmo que se notasse que estava com alguma pressa em chegar a uma das salas mais adiante. De tão entusiasmado, não conseguiu deixar de soltar uma pista.

Creio que no piso de cima vai encontrar algo que o deixará surpreso e feliz.

Não esclareceu qual seria a surpresa e também não o pressionei. Afinai se a minha intenção era tomar posse da Casa, seria conveniente que a olhasse bem nesta primeira visita como Fernando Pessoa. Aliás, para que nada falhasse, olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter sido. Estava a aproveitar este momento como mais nenhum outro na minha vida, continuando o passeio em câmara lenta, como se fosse o espectador de um filme que rodava depressa de mais para acompanhar o argumento». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

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