O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa
«Temos tido muito cuidado com a
casa e está tudo em condições, mesmo que às vezes o dinheiro seja curto para as
despesas de manutenção. Acho que vai gostar do que lhe vou mostrar e irá ficar
surpreendido com as melhorias que os directores têm feito.
Realmente, estava tudo alterado em
relação ao tempo em que eu vivera num andar deste prédio da rua Coelho da
Rocha. Já lá iam muitos anos, no entanto, reconhecia o lugar com facilidade, pois
alguns edifícios mantinham-se como eram na memória, apesar de estarem mais
degradados do que nos quinze anos em que habitara no bairro, entre 1920 e 1935.
As paredes que antes dividiam os pisos tinham sido destruídas, e o espaço à vista
era bem maior. Se me perguntassem, confessaria sem problemas que nunca teria conseguido
imaginar que os apartamentos fossem tão capazes de emparedar quem morava dentro
deles e apagar-lhe o exterior. Que largueza e amplitude que estas mudanças teriam
oferecido aos antigos moradores!
Bem, se morassem cá todos não
poderíamos ter feito estas alterações.
O funcionário fora rápido na resposta
ao meu comentário, fazendo-me pensar até que ponto este meu regresso não estava
encenado na sua cabeça há bastante tempo. Passaria ele os dias a pensar no que
me diria, caso eu voltasse a esta casa, ou seria apenas um empregado cuidadoso?
Posso dizer que, para o primeiro contacto, estava a ficar com uma boa opinião sobre
a Casa e que, se todos os funcionários fossem como este, a instituição estava bem
entregue.
Continuámos a visita ao rés-do-chão,
sempre com ele à minha frente a mostrar-me a habitação, tendo eu rapidamente desistido
de a continuar a reconstituir mentalmente. Encaminhou-me para a escadaria que levava
ao primeiro andar e, certo de que iria fazer-me uma surpresa, perguntou se queria
subir pelos degraus ou se preferia experimentar o elevador.
Tenho a certeza de que isto é que
não estava cá no seu tempo!
Realmente, este regresso à minha última
morada era uma surpresa constante. Olhei para os degraus de madeira e contei-os,
para confirmar se o seu número se mantinha o mesmo. Com tanta obra feita
entretanto... Era a mesma quantidade de degraus, o que me permitia continuar a repetir
a contabilidade que executava todos os dias ao chegar a casa. Porque seria que
eu contava os degraus, perguntei-me. A questão seria antes o porquê de o fazer neste
regresso e de como é que me lembrava desse tique, após quase um século passado?
Voltei ao presente devido à pergunta do funcionário e respondi-lhe que preferia
subir pelos degraus. Como fazia antigamente, não é?
Respondi-lhe que sim, enquanto reparava
nos pormenores de decoração da casa, sempre com a minha imagem espalhada a cada
canto. Eram estátuas, frases, poemas e desenhos. Uns meus. uns de outras pessoas
sobre mim, mas sempre em torno do mesmo tema: eu. Coisas em que não tinha reparado com tanto cuidado na minha visita
anterior à Casa Fernando Pessoa, às escondidas e ainda distante de ser quem vim
a ser. O funcionário aproveitava a minha demora para ir explicando o significado
do mobiliário novo e contava-me a sua história, mesmo que se notasse que estava
com alguma pressa em chegar a uma das salas mais adiante. De tão entusiasmado, não
conseguiu deixar de soltar uma pista.
Creio que no piso de cima vai
encontrar algo que o deixará surpreso e feliz.
Não esclareceu qual seria a surpresa
e também não o pressionei. Afinai se a minha intenção era tomar posse da Casa, seria
conveniente que a olhasse bem nesta primeira visita como Fernando Pessoa. Aliás,
para que nada falhasse, olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e
aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter
sido. Estava a aproveitar este momento como mais nenhum outro na minha vida,
continuando o passeio em câmara lenta, como se fosse o espectador de um filme que
rodava depressa de mais para acompanhar o argumento». In João Céu e Silva, A Segunda
Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-
Cortesia de AGePazEditores/JDACT
JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,