segunda-feira, 4 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Havia os que passavam a correr e ficavam com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com o vislumbre de alguém que consideravam estar morto…»

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O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Daí que tenha ignorado a confusão que estava a acontecer poucos degraus acima. É que, na balaustrada aonde ia dar este primeiro vão de escada, esperava-me meia dúzia de pessoas que acompanhavam cada passo e analisavam cada gesto que eu fazia.

Observei-as e notei esse olhar incrédulo com que era habitual repararem em mim desde que ressurgira como Pessoa. Se, para alguns, a primeira sensação era o espanto perante a diferença entre a reprodução viva e a imagem estática, para outros, o mais estranho era o facto de eu falar. Notara essa incapacidade em aceitarem como real a fantasia que tinham de mim nestes últimos tempos em que ocupava os meus dias no Martinho da Arcada a reviver o passado.

Havia os que passavam a correr e ficavam com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com o vislumbre de alguém que consideravam estar morto; os que paravam e fixavam os olhos no poeta enquadrado por um cenário que era mais literário do que possível; os que não queriam acreditar e me questionavam, e os que não se surpreendiam, talvez por já terem visto de tudo. Aliás, a existência de vida para um heterónimo de Fernando Pessoa após a sua morte não era coisa que acontecesse pela primeira vez já que antes um escritor até fizera um romance inteiro sobre o reaparecimento de Ricardo Reis por nove meses!

A verdade é que as pessoas ainda se surpreendiam com o meu regresso, mesmo que todos soubessem de tal novidade devido à quantidade de notícias publicadas nos últimos dias, e continuavam a ficar especadas, tal como acontecia com as que me aguardavam no fim do lance de escadas. A razão deste espanto não seria de estranhar, visto que a segunda vinda do poeta era palpável na carne do meu corpo e não como mero protagonista de um livro. Se me espetassem sairia sangue, coisa que ao Ricardo Reis do romance jamais aconteceria, porque era feito de palavras. Aliás, se me dessem tempo, o que iria sangrar era a continuação da obra do poeta. E isso é que era importante, até porque faltava aos portugueses alguém em quem acreditar e que lhes devolvesse a sua própria voz. Quem melhor do que um poeta para interpretar esta angústia tão visível num povo que já elegera um outro poeta como o seu patrono do dia nacional? A única condição que colocaria, quando fosse o tempo certo, era a de não me virem com a história do V Império. Não queria mais ilusões!

Eram já mais de uma dúzia as pessoas que me esperavam no primeiro andar da Casa. Se fora lento a subir as escadas, elas foram rápidas a concentrar-se junto ao corrimão, mesmo que eu não tivesse reparado no ajuntamento, porque prestei mais atenção ao que estava pendurado ou pintado nas paredes. Curiosas e receosas, iam recuando cada vez que eu avançava, ladeado pelo funcionário que me encaminhava para o lugar que definira como sendo o de uma surpresa feliz. Eis senão quando a directora da Casa interrompe a minha entrada triunfal e me manda parar». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

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