«Finalmente em Cochim, onde haviam desembarcado no primeiro dia de Novembro, a fortaleza de madeira, com a sua pequena povoação de casas de troncos e cobertura de folhas de palma, causara-lhe desilusão e temor. Enquanto António não era provido no seu cargo, ainda ocupado pelo oficial em funções, fora-lhe atribuída para moradia uma dessas cabanas, junto ao baluarte, onde ela vivera em contínuo sobressalto do fogo, dominando os medos para não enfadar o seu homem e acorrendo sempre ao toque do sino para combater as chamas.
Graças a Zobeida e Giauhare, não sentira solidão, apesar de ser a
primeira portuguesa a pisar terra da Índia, uma proeza de que muito se
orgulhava. Poucos dias após a sua chegada, apenas instalada na sua nova casa e
com a ajuda das meninas e de uma parteira malabar, dera à luz o filho naquele mundo
onde tudo lhe era estranho. Quase morrera de susto, quando a aparadeira gentia
a lavara e ao filho, por três vezes, em água quente e fria e não enfaixara a
criança, como era de uso em Portugal. Os homens fazem as leis, as mulheres os costumes!, pensara, decidida a aceitar os modos da terra que não fossem contra
a sua religião e natureza e este do banho, sobretudo quando estava com as
regras, o que era proibido pelos físicos portugueses como coisa prejudicial e
muito perigosa, era afinal um preceito prazeiroso que adoçava os sentidos.
Não se queixara, nem se arrependera da sua vinda, porque, se era
esse o preço a pagar para estar com o homem que amava, dava por bem empregue o
sacrifício. No ano seguinte, Iria assistiria maravilhada à reconstrução da
fortaleza em pedra e cal, ordenada por dom Francisco de Almeida, que lograra o
grande feito de convencer el-rei a dar-lhe permissão para a fazer assim forte e
cobrir de telha os seus edifícios e as casas da nova povoação. Como alcaide-mor
de Cochim, António tivera direito a casa dentro da fortaleza, para onde Iria se
mudara com o filho e as meninas.
Decorridos já oito anos sobre esses sucessos, Iria ainda gostava
de passear ao longo das ameias e varandas das suas altas muralhas, levando
Diogo pela mão e contando-lhe histórias. Era uma bela construção de forma
quadrada, tendo nas duas esquinas do lado da praia cubelos de dois sobrados,
cobertos com pasta de chumbo e guarnecidos de ameias; nas outras duas esquinas
erguiam-se as torres quadradas também de dois sobrados, o de cima para as casas
do capitão e do alcaide-mor com a sua gente, o de baixo para armazéns de
mercadorias grossas.
Caminhando pelas varandas que ligavam as torres, mãe e filho
podiam ver, no lado de dentro, o pátio com o grande poço no meio e a casa da
tranqueira que fora reforçada, onde viviam o feitor e os restantes oficiais. A
porta abria para o lado do mar e, no interior, tinham construído um vasto
alpendre com bancos muito bem lavrados onde o vizo-rei vinha tomar o fresco com
os seus fidalgos. Já não necessitava de levantar Diogo nos braços para ele ver
a ribeira em que se varavam as naus, com os estaleiros para a sua reparação e
também construção de navios tão bons como os de Portugal. Agora, o menino alçava-se
em bicos dos pés a olhar maravilhado para o vaivém dos elefantes de trabalho
que transportavam nas trombas os pesados troncos de madeira, cortados pelos
lenhadores da casta dos revolons, para os locais indicados pelos cornacas
seminus escarranchados nos seus cachaços». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete
Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.
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Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica,