terça-feira, 26 de março de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Chegava Maio. Frei Estêvão e Marco Túlio que, disfarçados, rondavam o Bargello, certa madrugada viram el-rei ser levado, sob forte escolta, numa carroça, atravessar o Arno por il ponte Vecchio e, pela porta Romana, abandonar a cidade em direcção ao sul»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«... que ele nunca chegou a usar, adiantou frei Estêvão. Depois, enquanto el-rei ajoelhava diante do túmulo a rezar, os companheiros passeavam os olhos pelo recinto, desde o pavimento em cosmatesco à abóbada com medalhões de Luca della Robbia, aos frisos com os brasões da família, ao painel dos três santos... Que santos são?, perguntava Túlio em voz baixa. São Tiago, e o frade apontava, aquele São Vicente e este Santo Eustáquio.

Porquê? O primeiro, patrono do cardeal. Sabeis latim? Não? Iacobus é o nome latino de Jaime. O segundo por ser padroeiro de Lisboa, de que ele foi bispo... o terceiro, concluía el-rei que se lhes juntara, por ser o santo de seu título cardinalício. Observavam agora a estátua jacente, a serenidade da expressão do cardeal, os dois puni segurando o manto mortuário...

Nada melhor que o mármore, observou Marco Túlio, para dar a ideia do sono eterno... e liam o epitáfio... MORS IVVENEM RAPVIT... VIX.NA.XXV.M.XI.D.X. OBIIT AN.SAL.MCCCCLIX..., morreu na idade de vinte e cinco anos, traduzia frei Estêvão, onze meses e dez dias, em mil quatrocentos e cinquenta e nove...

Ao descerem da colina, disse el-rei: Procuremos agora a protecção do grão-duque meu primo. Seguiram pela margem do Arno em direcção ao palácio ducal. Aguardava-os a sombra negra de Filipe de Espanha: o grão-duque, receoso de outro sucesso como o de Veneza, negou-se a recebê-lo e ordenou que o prendessem no Bargello.

Frei Estêvão e Marco Túlio ficaram cá fora descoroçoados, sem bem saberem que fazer. Enfadados se viram também os fidalgos portugueses, em Veneza, com as novas que lhes chegavam das buscas castelhanas. Ordenaram de partir todos, cada um por seu caminho, uns por mar, outros por terra, para Florença e lá se ajuntarem.

Acrescentou-se-lhes o enfado, aí chegados, com saberem pelos dois amigos da prisão de el-rei e ainda mais quando se acharam, por ordem do grão-duque, intimados a sair do estado da Toscana.

Os meses escoavam-se. O grão-duque carteava-se com Filipe terceiro. Dispunha-se, com ânimo servil, a entregar-lhe o prisioneiro. Dissesse Sua Majestade o que houvesse por bem. Faz o rei de Espanha reunir o conselho de estado, que sugere seja o homem entregue ao vice-rei de Espanha em Nápoles. Devia este averiguar las senales públicas y secretas del charlatán... quien es y de que lugar y que el lo confiese y quien le há metido en este enbuste. Não o condenassem à morte, mas a galeras perpétuas, vindo depois a Espanha para que en todas partes sea visto y con esso se desenganen deste falso rumor...

Chegava Maio. Frei Estêvão e Marco Túlio que, disfarçados, rondavam o Bargello, certa madrugada viram el-rei ser levado, sob forte escolta, numa carroça, atravessar o Arno por il ponte Vecchio e, pela porta Romana, abandonar a cidade em direcção ao sul. Afastados e escondidos, vigiavam também os olhos de Nuno da Costa». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,