quarta-feira, 20 de março de 2024

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «… nomes a formarem várias ligações, mapa de muitos caminhos, como se todos fossem filhos, primos, sobrinhos, irmãos uns dos outros; e também as crianças, nunca esquecidas, crianças de todos, futuros pais, futuros avós, futuros bisavós»

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26 de Março de 2021

«Perguntou a uma delas pela mãe. Recebeu resposta e agradecimento: senhor comendador. Tinha pressa de ir ter com a mulher, de certeza que já estava bem acordada. Durante um par de minutos, inclinou-se lá de cima, sobre a linha dos fornos que caramelizavam a alfarroba. Havia trabalhadores a varrerem cinza, a carregarem caldeiras, cada um a cumprir a sua função. Pouco faltaria para haver espanhóis a tomarem aquela mistura, no desayuno em casa ou encostados à barra, como eles dizem. A torrefação Camelo é uma máquina certa, nunca se cansava de repetir. Lembrou-se do bolo seco na boca, a mastigá-lo, as pessoas vestidas com as melhores roupas, voltas e voltas na boca, havia muito que essas pessoas não teriam conseguido imaginar. Desembaciou os olhos. À sua frente ainda estavam os homens que trabalhavam nos fornos, sorriu para todos eles.

Voltou à divisão dos sacos de café, Uganda, das máquinas a torrar grãos, das pás a arrefecê-los. Desbarrigado, indiferente ao fato de treino fora de moda, levava uma alegria que era uma espécie de vaidade. No entanto, mesmo à beira da saída, o encarregado quis dar-lhe uma palavra mais sóbria, falou do lugar onde o senhor Rui tinha de ir nessa tarde.

A pensar no lugar onde tinha de ir nessa tarde, aquela hora mudou de cor. O sorriso esmoreceu no rosto do senhor Rui, senhor comendador.

Era um veio de acidez, podia avançar por ele, isolá-lo do resto do sabor. Nesse exercício, conseguia identificar um tipo de frescura que sugeria a imagem de maçãs verdes, como quando descascava uma maçã noutro tempo e a lâmina da faca tinha riscos húmidos e a carne da maçã sangrava pequenas gotas de sumo ácido. Mas, claro, reconhecia também o doce, a sua preferência. Em alguma idade teria aprendido esse gosto, o doce confortava-o. Todavia, o doce era complexo. Ali, aquecia-lhe ligeiramente a boca com um morno que, sem inventar, lhe trazia a memória de bolachas da infância, bolachas maria em dias assinalados.

Pousou a chávena no pires, o som da loiça. A manhã entrava inteira por aquele momento, assentava nas paredes brancas, pousava em toda a extensão da mesa, na toalha, no cesto do pão, nas palavras que a mulher dizia. Ao olhar para a mulher, sentiu ainda o peso do café sobre a língua, a espessura, sentiu também o seu nome bonito, Alice. O líquido descia-lhe pela garganta, desaparecia, e o sabor do café evaporava lentamente no interior da boca. Nesse processo, desenrolava novos sabores ou, talvez, novas gradações do mesmo sabor, como tons de uma cor, castanho. Aquilo que a mulher dizia apresentava uma delicadeza semelhante, estendia um enredo de filhos, netos e bisnetos, que se cruzavam em múltiplas direcções, nomes que se enredavam, Helena, Rui, Ivan, Rita, João Manuel, Marcos, nomes dispostos em várias ordens; e também as crianças, os filhos do Rui, do Ivan, do Marcos; nomes a formarem várias ligações, mapa de muitos caminhos, como se todos fossem filhos, primos, sobrinhos, irmãos uns dos outros; e também as crianças, nunca esquecidas, crianças de todos, futuros pais, futuros avós, futuros bisavós». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,