Sevilha, 1492
«(Ismael desviou ou olhos. Não
disse o que Paloma já tinha adivinhado. Os documentos que planeara esconder
continham cópias de um mapa . que ele e o Papá tinham roubado da Corte. Se
fossem apanhados, seriam todos julgados como traidores e queimados nas piras da
Inquisição (maldita).
Ao longe, ouve-se ladrar um cão
solitário. A alça do saco de Paloma enterra-se-lhe dolorosamente no ombro, e
sente um bater desordenado no peito, no sítio onde o Papá diz que fica o
coração. Tropeça e pega na mão de David, rezando para conseguirem passar em
segurança. Isto é só o princípio do fim. Não é o fim. O que lhes trará a manhã?
Esforça-se por pensar na rota que
Ismael planeia seguir, atravessando o rio Guadalquivir, passando pelas ruínas
de Itálica através dos velhos campos de trigo de Roma, e depois subindo as
colinas. Avançam-apressadamente e em silêncio. O vapor da sua respiração
ofegante flutua acima deles, dissolvendo-se na noite.
Salamanca
O fumo é sempre a primeira coisa
que Ari procura quando abre a janela. Nos dias em que queimam conversos na
praça, consegue ouvir os gritos e os uivos da multidão.
Sente o estômago às voltas só de
pensar nisso. Nesses dias, é-lhe impossível concentrar-se. Tem de trancar as janelas
para evitar o fedor enjoativo que o vento traz da pira, e ao cair da tarde há uma
camada de cinzas gordurentas que se lhe cola aos dedos se não limpar primeiro o
beiral da janela.
Debruça-se sobre o parapeito para
afastar as portadas. Hoje a viela está silenciosa. O céu é de um azul
transparente. Ao longe, consegue ver os contornos do pináculo da catedral.
Abaixo, nas margens do rio, há mulheres a lavar roupa e a pendurá-la nas cordas
que se estendem entre as árvores, com as suas vozes cantadas a erguer-se por
cima do rio'
Nem um sopro de vento. Nem o mais
pequeno cheiro a fumo. Graças sejam dadas a Deus! Hoje não há autos de fé na praça.
Com um suspiro de alívio, volta para o escritório. Há uma tira de luz que se projecta
à sua frente, lançando uma luz dourada sobre a página em branco do seu livro, numa
dança brincalhona. O irmão mais velho, Samuel, já está sentado à secretária. Com
a pena na mão, tem o olhar fixo nos cálculos que o Pai lhes deixou para completar.
Fecha a janela, diz Samuel, sem erguer
os olhos. Espirra e limpa com um lenço o nariz a pingar. O Pai quer que
acabemos estes hoje. Ari fecha a janela e senta-se ao lado do irmão. Distraído,
agita-se no lugar, brinca com a pena de junco, fazendo agitar à volta do dedo. O
dia estende-se à sua frente numa monotonia sufocante e interminável.
Se ao menos acontecesse qualquer coisa.
Uma coisa diferente. Uma coisa fora do comum. Nada que se pareça com mais autos
de fé na praça. Deus nos livre! Mas uma coisa especial. Uma mudança qualquer que
lhe desse uma desculpa para sair da secretária, da interminável rotina de tabelas
e ângulos e cálculos feitos sob o olhar cinzento e incansável do Pai.
E vê lá se estás quieto. Samuel
afasta dos olhos uma mecha de cabelo. Estás a sonhar outra vez. Os teus cálculos
estão péssimos. Devias estar a estudar.
Ari baixa os olhos para o exercício,
molha a pena no tinteiro e segura-a, suspensa, sobre o papel. O Pai vai regressar
em breve para verificar o trabalho deles. Diz que só através do estudo se ganha
mérito. Os números são tudo o que conta, segundo o Pai. São o padrão e a razão
do mundo, explicam as leis do universo.
Se
o mérito se ganha através dos números, então ele, Ari, nunca terá nenhum. Samuel
é bom a fazer cálculos. Tem carradas de mérito. Com um mérito daqueles, seria de
esperar que ele se entendesse com o mundo. Ou, pelo menos, que aprendesse a amar
melhor o próprio irmão!» In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei,
Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,