domingo, 24 de março de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… ou em sussurros imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte»

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«Assim, o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. E apesar de tudo não podemos deixar de encaminhar nossas vidas para o ouvir e o ver e o presenciar e o saber, com a convicção de que essas nossas vidas dependem de estarmos juntos um dia

ou de atendermos um telefonema, ou de nos atrevermos, ou de cometermos um crime ou causarmos uma morte e sabermos que foi assim. Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenham sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e vêem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida e vai-se-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada. Dirigimos toda a nossa inteligência, os nossos sentidos e o nosso afã à tarefa de discernir o que será nivelado, ou já está, e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perdendo. Ou talvez que nunca tenha havido nada.

Talvez não tenha havido uma só palavra entre Miriam e o homem durante todo o instante em que acreditei as estar perdendo. Talvez tenham apenas se olhado, ou se abraçado de pé, calados, ou se aproximado da cama para se despirem, ou talvez ela tenha se limitado a descalçar-se, mostrando ao homem seus pés que teria lavado tão conscienciosamente antes de sair de casa e agora estariam cansados e doloridos (a planta de um deles suja pelo calçamento da rua). Não devem ter-se esbofeteado nem se engalfinhado numa briga nem nada do género (quero dizer num corpo-a-corpo), porque depois se arqueja fortemente e se grita ao fazê-lo, ou então logo antes, senão depois. Talvez, como eu (mas eu o fazia por Luísa, e entrava e saía), Miriam tenha ido ao banheiro e se trancado nele durante aqueles minutos sem dizer nada, para se olhar no espelho, se arrumar e tentar apagar do rosto as expressões acumuladas de ira, cansaço, decepção e alívio, perguntando-se que outra seria mais adequada e benéfica para por fim encarar aquele homem canhoto de braços peludos que teria achado engraçado ou divertido ela ter esperado gratuitamente e ter me confundido com ele. Talvez o tenha feito esperar um pouco, a porta fechada do banheiro, ou talvez sua intenção não fosse essa, mas sim chorar às escondidas e contidamente sobre a tampa da privada ou sobre o rebordo da banheira com as lentes de contacto tiradas, se é que as usava, enxugando-se e ocultando-se a seus próprios olhos com uma toalha até conseguir se acalmar, lavar o rosto, pintar-se e estar em condições de sair de novo, dissimulando.

Eu tinha pressa de poder ouvir e, para tanto, necessitava que Luísa voltasse a dormir, que deixasse de ser corpórea e contínua para relegar-se e fazer-se distante, e necessitava estar quieto para escutar através da parede do espelho ou pela sacada aberta, ou estereofonicamente através de ambos. Falo, entendo e leio quatro línguas contando a minha, por isso, suponho, me dediquei parcialmente a ser tradutor e intérprete em congressos, reuniões e encontros, sobretudo políticos e às vezes o mais alto nível (em duas oportunidades servi de intérprete a chefes de Estado; bem, um só era chefe de governo). Suponho que por isso tenho a tendência (como tem Luísa, que se dedica à mesma coisa, só que não compartilhamos exatamente as mesmas línguas e ela está menos profissionalizada ou se dedica menos e, portanto, não a tem tão acentuada) de querer compreender tudo o que se diz e que chega a meus ouvidos, tanto no trabalho como fora dele, ainda que à distância, ainda que num dos inúmeros idiomas que desconheço, ainda que em murmúrios indistinguíveis ou em sussurros imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

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