terça-feira, 5 de março de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia…»

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«Mas eu não conhecia ninguém em Havana, mais ainda, era a primeira vez que estava em Havana, em minha viagem de lua-de-mel com minha mulher tão recente. Virei-me por fim e vi Luísa erguida na cama, com os olhos fixos em mim mas sem ainda me conhecer nem reconhecer onde estava, aqueles olhos febris do doente que acorda assustado e sem ter recebido aviso prévio de seu despertar no sono. Estava levantada, e o sutiã saíra do lugar enquanto dormia, ou então no movimento brusco que acabava de fazer ao erguer-se: estava torcido, tinha descoberto um ombro e quase um seio, com certeza a estava incomodando, devia tê-lo prendido com seu próprio corpo esquecido no mal-estar e no adormecimento. Que está acontecendo?, perguntou apreensiva. Nada, respondi. Volte a dormir.

Mas não me atrevi a achegar-me e acariciar seus cabelos para tranquilizá-la de verdade e para que voltasse ao torpor, como teria feito em qualquer outra circunstância, porque naquele instante eu não me atrevia a abandonar meu lugar na sacada, nem a desviar os olhos por pouco que fosse daquela mulher que estava convencida de ter estado comigo, nem a evitar por mais tempo o diálogo abrupto que da rua se impunha a mim. Era uma pena que falássemos a mesma língua e eu a compreendesse, porque o que ainda não era diálogo já se tornava violento, talvez porque não o fosse, não fosse diálogo. Eu te mato, filho-da-pu…! Juro que eu te mato aqui mesmo!, gritava a mulher da rua.

Gritava aquilo do chão e sem poder me encarar, porque, justo no momento em que eu me virara para dizer a Luísa quatro palavras, um sapato tinha saído do pé da mulata e ela caíra, sem se machucar mas sujando na hora a saia branca. Gritava isto, Eu te mato, e ia se levantando, um tombo, a bolsa sempre pendurada no braço, não a soltara, aquela bolsa ela não soltaria nem que a esfolassem, tentava sacudir-se ou limpar a saia com a mão e estava com um pé descalço, erguido no ar, como se não quisesse de maneira nenhuma pousá-lo e sujar também sua planta, nem as pontas dos dedos sequer, o pé que poderia ver o homem que ela tinha encontrado, vê-lo de perto, em cima, e tocá-lo, mais tarde.

Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia, ainda que apenas um segundo, o necessário para secar o suor que lhe empapava a testa e os ombros e para ajustar ou tirar o soutien para que não a incomodasse e fazê-la regressar com palavras ao sono que a curaria. Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento, como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era eu quem a ultrajava.

Ela estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto. Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil, garra de leão, aquele que agarrava e significava Você não vai se livrar de mim ou Vai comigo para o inferno, suspendeu-o no ar, e o braço nu ficou congelado no alto, como o de um atleta». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,