sexta-feira, 15 de março de 2024

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros de azul e roxos esmaecidos»

jdact e wikipedia

Cambridge, Inglaterra

«Coitado do velho Jacob. Vilão! Eu vi o que o senhor fez. Eu sei, respondeu o outro, racionalmente. Por isso vou ter de matá-lo também. Sem mais uma palavra, pegou o maior cutelo do acossado, que se sentiu congelar. Ergueu a arma bem no alto. O açougueiro emitiu um grito tão agudo que foi quase inaudível. Timon virou o cutelo, baixou brutalmente a parte chata na cabeça do homem e apenas o derrubou inconsciente. Com todo o cuidado, enfiou a arma na mão direita da vítima. Depois ergueu o cachorro, abriu-lhe a garganta e despejou um pouco de sangue no dono e na lâmina.

Lançou o olhar à rua escura por um instante. Aguçou os ouvidos em busca da mínima sugestão de outras testemunhas. Convencido de estar sozinho na missão, escancarou a boca do cão, empurrou-a no amplo pescoço do açougueiro e fechou-a com força até os dentes sem vida extraírem sangue. Examinou as outras facas na loja até encontrar uma lâmina de fino gume. Usou-a para retalhar vários buracos profundos no pescoço do açougueiro, buracos que pareciam marcas dos dentes de um cachorro. Dois perfuraram a jugular, e logo jorrou sangue, espalhando uma rubra decoração pelo piso.

No dia seguinte, as pessoas diriam que coisa terrível!, pensou Timon consigo mesmo, recuando para admirar o quadro vivo. O cão do açougueiro atacara-o e ele se vira obrigado a retalhar a garganta do animal. Então, o coitado do homem sangrara até à morte antes que alguém pudesse socorrê-lo. Que ironia, num açougue, não era?

Timon vigiou durante cinco minutos para ter certeza de que o homem morrera. Só então examinou o próprio manto à procura de manchas, mas a vantagem de usar preto era que o sangue raras vezes deixava algum traço visível. Sem mais pensar nos mortos, o monge virou-se para a rua e pôs-se a recitar, de memória, toda a Poética de Aristóteles.

Na tarde seguinte, o tempo esquentou mais. Cambridge beirava a Primavera, pelo menos no lado de fora. O ar no interior das paredes do Grande Salão continuava de rigoroso Inverno. Até as chamas das velas tremiam, tiritando. O lugar era uma caverna. Janelas altas, embaçadas por décadas de poeira, pareciam planeadas para impedir a entrada da luz. As paredes exibiam nas sombras indícios de musgo, cujo cheiro pairava no ar. Os pisos, cinzentos como nuvens de chuva, apenas vedavam o frio.

Vigas de madeira cor de bico de corvo sustentavam o tecto de pé-direito alto, de cinquenta pés ou mais, incitando-o rumo ao céu. A gravidade, que pena, fazia o trabalho do diabo, afundando as vigas e ameaçando derrubar o tecto.

O irmão Timon, sem dúvida com mais de seis pés de altura no áspero manto de monge asceta, absorvia, e memorizava, tudo. A posição de cada homem, de cada mesa, a disposição das velas, a pequena caixa perto da porta, o aroma de conhaque: ele catalogava todas essas coisas na mente. Mas o que achou mais fascinante foi o ruído da imensa sala: um constante e baixo zumbido, resultado de vozes sussurradas com a arranhadura de penas em papel.

O diácono Marbury conduziu Timon de uma escrivaninha a outra. Muitas, vazias; algumas, ocupadas por estudiosos absortos, sete, ao todo. Os homens espalhavam-se aqui e ali e entre as cinquenta mesas de trabalho no salão. Os enormes cubículos de estudo distribuíam-se em fileiras de cinco, e nenhum deles se sentava em seguida nem defronte a nenhum outro.

Timon seguiu em silêncio atrás do diácono Marbury até ao lugar indicado, contando os passos e sentindo os contornos do piso ao andar. Aqui estamos, disse o anfitrião, afinal. Apresento-lhe minha filha, Anne. Srta. Anne, este é o seu novo tutor, irmão Timon.

O monge ergueu os olhos para encontrar os de Anne. Primeiramente, notou que a moça tinha uma postura perfeita. A estrutura dos ossos era um estudo de ângulos rectos e permitia uma graça ou fácil bem-estar que relaxavam os músculos. Ela sentara-se a uma pequena mesa retangular, não escrivaninha. Orelhas pequenas demais, olhos grandes demais, lábios cheios demais e faces mais avermelhadas, que ditava a moda. Tomadas em conjunto, essas partes compunham um todo de estranho encanto. Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros de azul e roxos esmaecidos. Sem perceber, o recém-chegado escovou com a mão os cabelos para trás, examinando cada feição da jovem como se lesse um difícil trecho de grego. Batia repetidas vezes e ritmadamente no polegar com os dedos da mão direita, enquanto a encarava». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT

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