sábado, 30 de outubro de 2010

Camões e a Infanta D. Maria: Parte IV, «Resolvido o enamorado poeta a fazer-se entender da infanta, não tardaria muito, podemos supô-lo, que esta lhe não percebesse os intuitos. E sem querer dizer que o meio empregado por Camões fosse uma declaração escrita, o que é certo é que mais de uma das suas poesias se pode considerar como para isso destinada»

(1521-1577)
Cortesia de publicacoes foriente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

Estava, por isso, firmemente resolvido a esconder lá bem no íntimo o segredo do seu coração:
Mote (alheio)
De dentro tengo mi mal,
Que de fuera no hay senãl.

Volta
Mi nueva y dulce querella
Es invisible á la gente.
El alma sola la siente.
Que el cuerpo no es dino della.
Como la viva centella
Se encobre en el pedernal,
De dentro tengo mi mal.

Mote (alheio)
A dôr que a minha alma sente.
Não na sabe toda a gente. 

Voltas
Que estranho caso de amor!
Que desejado tormento!
Que venho a ser avarento
Das dores de minha dôr!
Por me não tratar peor,
Se se sabe, ou se se sente,
Não na digo a toda a gente.

Minha dôr e causa della
De ninguém ouso fiar,
Que seria aventurar
A perder-me ou a perdê-la.
E pois só com padecê-la
A minha alma está contente,
Não quero que a saiba a gente.

Ande no peito escondida,
Dentro na alma sepultada;
De mi só seja chorada,
De ninguém seja sentida.
Ou me mate, ou me dê vida,
Ou viva triste ou contente,
Não na saiba toda a gente.

Mote (alheio)
Para que me dan tormento,
Aprovechando tan poço?
Perdido, mas no tan loco.
Que descubra lo que siento.

Voltas
Tiempo perdido es aquel
Que se passa en darme afan;
Pues, cuanto más me lo dan,
Tanto menos siento dél.

Que descubra lo que siento?
No lo haré, que no es tan poco;
Que no puede ser tan loco,
Quien tiene tal pensamiento.

Sepan que me manda Amor
Que de tan dulce querella
A nadie dé parte della,
Porque la sienta mayor.

Es tan dulce mi tormento,
Que aun se me antoja poco ;
Y, si es mucho, quedo loco
De gusto de lo que siento.

Cortesia de luardejaneiro
Datam, a meu ver, deste idílio in partibus, além d’outras, as seguintes poesias:
Eu cantarei de Amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que o não sente.

Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e vida ausente.

Também, senhora, do despejo honesto
De vossa vista branda e rigorosa
Contentar-me-hei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, ingenho e arte.
(Soneto 2)

Transforma-se o amador na cousa amada.
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com elle tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidea,
Que, como o accidente em seu sujeito,
Assi co a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idea,
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
(Soneto 10).

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sobre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico e enganado,
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu, por amor, somente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.
(Soneto 151).

Criou a natureza damas bellas,
Que foram de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas
E a vós, senhora, fez do melhor dellas.

Ellas, diante de vós, são as estrellas.
Que ficam com vos ver logo eclipsadas;
Mas se ellas têm por sol essas rosadas
I.uzes de sol maior, felices dellas!

Em perfeição, em graça e gentileza,
Por um modo entre humanos peregrino,
A todo o bello excede essa belleza.

Oh! Quem tivera partes de divino,
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor val ante vós, de vós sou dino.
(Soneto 153).

Mote
Tal estoi, despues que os vi,
Que de mi propio cuidado
Estoi tan enamorado,
Como Narciso de si.

Voltas
Una sola deferência
Hallo neste amor altivo:
Que el murio de su presencia (1),
Mas yo con la vuestra vivo.

En el punto que yo os vi,
Se realço mi cuidado,
De modo que enamorado,
Por vos, me quede de mi.

Nacieron de un amor dos,
Cupido fue el tercero,
Que haze que bien me quiero,
Solo porque os quiero a vos.

Los estremos que en vos vi
Me han traído a tal estado,
Que me veo enamorado
De amor de vos y de mi.

Cortesia de purl
Mas esta situação não podia prolongar-se por muito tempo. O poeta, enamorado como estava, começou a impacientar-se, porque a infanta o não percebia:

Mote (alheio)
Se a alma ver-se não póde
Onde pensamentos ferem,
Que farei para me crerem?
_____________________________________________
(1) No texto corrente lê-se:

Que el murio con preferencia.

Mas não sei bem o que isto significa. O que presumo é que o poeta quis aludir ao ter Narciso morrido de paixão por si mesmo, contemplando a sua própria imagem na água de uma fonte.
_______________________________________________
 
Voltas
Se na alma uma só ferida
Faz na vida mil sinais,
Tanto se descobre mais,
Quanto é mais escondida.
Se esta dôr tão conhecida
Me não vêem, porque não querem,
Que farei para me crerem?

Se se pudesse bem ver
Quanto calo e quanto sento,
Depois de tanto tormento
Cuidaria alegre ser.
Mas, se não me querem crêr
Olhos, que tão mal me ferem,
Que farei para me crerem?

É claro que o poeta não se atreveria a fazer directamente uma declaração de amor à infanta. Era um passo por demais arriscado, apesar da disposição de espírito em que ele se encontrava e que tão bem descrita se acha na canção 11:

Aqui o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava;
..................................................................
Dar ás cousas que via outro sentido.


Cortesia de arqnet
Mas há, entre as poesias de Camões, algumas que poderiam muito bem ter sido escritas para serem recitadas na presença da ilustre senhora e em que não seria difícil descobrir uma intenção reservada.
Lêam-se, por exemplo, estas redondilhas:

Cantiga alheia
Pastora da serra,
Da serra da Estrella,
Perco-me por ella!

Voltas
Nos seus olhos bellos
Tanto Amor se atreve,
Que abrasa entre a neve
Quantos ousam vê-los.
Não solta os cabellos
Aurora mais bella.
Perco me por ella!

Não teve esta serra,
No meio da altura,
Mais que a formosura,
Que nella se encerra.
Bem ceo fica a terra,
Que tem tal estrella.
Perco-me por ella!

Sendo entre pastores
Causa de mil males,
Não se ouvem nos vales
Senão seus louvores.
Eu só, por amores,
Não sei fallar nella:
Sei morrer por ella!

De alguns que, sentindo
Seu mal vão mostrando,
Se ri, não cuidando
Que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
Só meus males della,
Perco-me por ella!

Se flores deseja
Por ventura, bellas,
Das que colhe — dellas
Mil morrem de inveja.
Não ha quem não veja
Todo o melhor nella.
Perco-me por ella!

Se na agua corrente
Seus olhos inclina,
Faz a luz divina
Parar a corrente.
Tal se vê, que sente
Por ver-se a agua nella.
Perco-me por ella!

Cortesia de historia8
Note-se também como ele insinua que, para o amor, não há diferenças sociais, por maiores que pareçam:

Mote
Descalça vai pela neve:
Assi faz quem Amor serve.

Voltas
Os privilegios que os reis
Não podem dar, póde Amor,
Que faz qualquer amador
Livre das humanas leis.
Mortes e guerras crueis,
Ferro, frio, fogo e neve,
Tudo soffre quem o serve.

Moça formosa despreza
Todo o frio e toda a dôr.
Olhai quanto pode Amor,
Mais que a própria natureza!
Medo nem delicadeza
Lhe impede que passe a neve.
Assi faz quem Amor serve.

Por mais trabalhos que leve,
A tudo se off’receria.
Passa pela neve fria.
Mais alva que a própria neve;
Com todo frio se atreve.
Vede em que fogo ferve
O triste que Amor serve!

de Maria Helena Ventura
Cortesia de illusionarypleasure
É também este o tema do Auto de Filodemo, que o poeta naturalmente leu ou tencionava ler no paço de Santa Clara.

Eis como principia o argumento:

«Um fidalgo português, que acaso andava nos reinos de Dinamarca, como, por largos amores e maiores serviços, tivesse alcançado o amor de uma filha de el-rei, foi-lhe necessário fugir com ela em uma galé, porquanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo chegados à costa de Espanha, onde ele era senhor de grande património, armou-se-lhe grande tormenta, que, sem nenhum remédio, dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a princesa, que em uma tábua foi à praia: a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de uma fonte pariu duas crianças, macho e fêmea; e não tardou muito que um bom pastor castelhano, que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudiu, a tempo que a mãe já tinha expirado. Crescidas, em fim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquele pastor, o macho que Filodemo se chamou, à vontade de quem os baptizara, levado da natural inclinação, deixando o campo, se foi para a cidade, aonde, por musico e discreto, valeu muito em casa de D. Lusidardo, irmão de seu pai, a quem muitos anos serviu, sem saber o parentesco que entre ambos havia. E, como de seu pai não tivesse herdado nada mais que os altos espíritos, namorou-se de Dionysa, filha de seu senhor e tio, que, incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada engeitam, lhe não queria mal».

CENA I
Filodemo, só.

Triste do que vive amando,
Sem ter outro mantimento
Que estar só phantasiando!
Só ua cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo:
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
……………………………….
Ora bem, minha ousadia,
Sem asas, pouco segura:
Quem vos deu tanta valia,
Que subais a phantasia
Onde não sobe a ventura?
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais valer,
Que o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veio a mi
Saber-me tão bem perder?
Eu, nascido entre pastores.
Fui trazido dos curraes
E dentre meus naturaes

Para casa dos senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora logo tão cedo
Quis mostrar a condição
De rústico e de villão!
Dando-me ventura o dedo,
Lhe quero tomar a mão!...
Mas oh! que isto não é assi,
Nem são villãos meus cuidados,
Como eu delles intendi;
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer de mi.
Porque, como hei eu de crer
Que me faça minha estrella
Tão alta pena soffrer,
Que somente pola ter
Mereço a gloria della?

CENA II
Filodemo, só.

Ah! senhora, que podeis
Ser remédio do que peno!
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
Num coração tão pequeno!

Se vos fosse apresentado
Este tormento em que vivo,
Creríeis que foi ousado
Este vosso — de criado —
Tornar-se vosso captivo?

CENA IV
Filodemo, cantando.

Adó sube el pensamiento,
Seria una gloria imensa,
Si allá fuese quien lo piensa.

Falla.
Qual espirito divino
Me fará a mi sabedor
Deste meu mal : — se é amor,
Se, por dita, desatino?
Se é amor, diga-me qual
Póde ser seu fundamento,
Ou qual é seu natural,
Ou porque empregou tão mal
Um tão alto pensamento?
Se é doudice, como, em tudo,
A vida me abrasa e queima?
Ou quem viu num peito rudo
Desatino tão sisudo,
Que toma tão doce teima?
Ah! senhora Dionysa,
Onde a natureza humana
Se mostrou tão soberana!
O que vós valeis me avisa,
Mas o que eu peno, me engana!


Cortesia de paulocampos 
Lêa-se também no acto II, cena 2ª, o diálogo entre Filodemo e Duriano.

«Filodemo... Já vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa que não é servir a senhora Dionysa; e posto que a desigualdade dos estados o não consinta, eu não pretendo della mais que o não pretender delia nada, porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga ; que este meu amor é como a ave phenix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.

Duriano. Bem praticado está isso, mas dias ha que eu não creio em sonhos.

Filodemo. Porque ?

Duriano. Eu vo-lo direi : porque todos vós outros, os que amais pela passiva, dizeis que o amador, fino como o melão, não ha de querer mais de sua dama que amá-la; e virá logo o vosso Petrarca e o vosso Pietro Bembo, atoado a trezentos Platões, mais çafado que as luvas de um pagem de arte, mostrando razões verisimeis e apparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê-la, e, ao mais, até fallar com ella. Pois inda achareis outros esquadrinhadores de amor mais especulativos, que defenderão a justa, por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne), se a qualquer destes lhe entregassem sua dama, tosada e apparelhada entre dous pratos, eu fico que não ficasse pedra sobre pedra. E eu já de mi vos sei confessar que os meus amores hão de ser pela activa, e que ella ha de ser- a paciente e eu agente, porque esta é a verdade. Mas comtudo vá vossa mercê co a historia por deante.

Filodemo. Vou, porque vos confesso que neste caso há muita duvida entre os doctores. Assi que, vos conto que, estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou quarenta legoas pelo sertão dentro de um pensamento, senão quando me tomou á traição Solina; e, entre muitas palavras que tivemos, me descobriu que a senhora Dionysa se levantara da cama por me ouvir e que estivera pela greta da porta espreitando quasi hora e meia.

Duriano. Cobras e tostões, sinal de terra. Pois ainda vos não fazia tanto ávante.

Filodemo. Finalmente, veio-me a descobrir que me não queria mal, que foi para mi o maior bem do mundo…

Duriano … Boas esperanças ao leme, que eu vos faço bom que, ás duas enxadadas, acheis agoa».


Camões estava chegado à fase da audácia. Eis como ele agora raciocina:

Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a fortuna a ousadia,
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe é guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia,
São umas illusões que leva o vento.

Abrir-se devem passos á ventura;
Sem si próprio ninguém será ditoso;
Os principios somente a sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura.
Perderá, por covarde, o venturoso
Que VOS vê, se os temores não remove.
(Soneto 132)

Mote (alheio)
Tudo póde uma affeição.

Glosa
Tem tal jurdição Amor,
Na alma donde se aposenta
E de que se faz senhor.
Que a liberta e isenta
De todo humano temor.

E com mui justa razão,
Como senhor soberano,
Que amor não consente dano.
E pois me soffre tenção,
Gritarei por desengano:
Tudo póde uma affeição!


Cortesia de hid0141
Resolvido o enamorado poeta a fazer-se entender da infanta, não tardaria muito, podemos supô-lo, que esta lhe não percebesse os intuitos.

E sem querer dizer que o meio empregado por Camões fosse uma declaração escrita, o que é certo é que mais de uma das suas poesias se pode considerar como para isso destinada. Leiam-se, por exemplo, estas oitavas (epistola IV).

Continua, numa próxima oportunidade! JDACT



Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT