sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Margarida Ribeiro: Um Filho de Camões? Comunicação apresentada à Secção Luis de Camões em 19 de Maio de 1995.

(1911-2001)
Portalegre
Cortesia da cm-Coruche 

Com a devida vénia a Margarida Ribeiro, Américo da Costa Ramalho e Justino Mendes de Almeida.
Um artigo interessantíssimo de Margarida Ribeiro referente ao livro «Vida Ignorada de Camões» do Prof. Hermano Saraiva.

Um filho de Camões ?
«A obra «Vida Ignorada de Camões», da autoria de José Hermano Saraiva, apareceu, depois de variadas intervenções publicitárias, alcançando êxito comercial. Contudo, graves erros cometidos por aquele Autor chamaram a atenção do Prof. Américo da Costa Ramalho que, na sua «Recensão Crítica», tratou de repor a verdade histórica e científica de importantes temas da Obra, que apelidou de biografia romanceada.

Cortesia de wook
Seria estulta arrogância de minha parte retomar a crítica daquele sapiente e autorizado Professor. Modestamente e ao meu nível, desejo apenas abordar alguns temas não tratados por aquele douto Professor, pelo muito que ferem a sensibilidade de quem respeita os valores da Pátria e o Homem-Poeta que nos legou uma herança imortal, sempre viva em todos os tempos. Erguer a voz onde disserta superiormente o nosso maior camonista, Prof. Justino Mendes de Almeida, é já ousadia. Porém, é precisamente aqui que devo apresentar os comentários sugeridos por aqueles temas, os quais me fizeram reflectir sobre aspectos da vida de Camões, da sociedade quinhentista e sobre a grande e profunda sabedoria do nosso Épico. Rogo me perdoem a redundância. Impôs-se à minha consciência repassar assuntos já muito discutidos com rigor científico e notabilíssima autoridade. Exige-o a narrativa do Dr. Hermano Saraiva, a fim de atingir a inopinada questão com a qual intitulo estes apontamentos. E pena que o faça tão tarde. Motivos imperiosos a tal obrigaram».

Cortesia de pauloborges
O Autor de «Vida Ignorada de Camões» afirmou que o nosso maior Poeta não frequentou a Universidade de Coimbra, sem admitir a hipótese de perda ou falta de registo de matrícula'.Aditou que o nosso Épico não teve a noção do modelo clássico da Poesia Épica com a intromissão da sua vida pessoal numa epopeia impessoal. Como exemplo desta última afirmação citou o corte das estâncias que se seguiriam à estrofe 40 do Canto VI, na qual se refere a intervenção de Lionardo, que propôs aos companheiros de viagem falar de amores pera passar o tempo (...), o que não era senão a oportunidade de Camões falar dos seus próprios amores. O ínclito Autor justifica, ainda, que teria sido um cristão-novo quem aconselhou o Poeta a suprimir aquela sua confissão amorosa ou talvez a censura o houvesse exigido uma coisa ou outra sem qualquer prova. Considerou, ainda, a cópia manuscrita de «Os Lusíadas», com letra do século XVI, uma versão judaizante.
( ... )
A estas hipóteses junta-se a força da tradição que chegou aos nossos dias de que Camões tenha permanecido ou até nascido em Coimbra, não estando provado este último facto. Há, ainda, na inspirada e emotiva estrofe 97, Canto III, na qual o Poeta compara Coimbra com Atenas, um intelegível orgulho e subjacente saudade:

Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E da Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do Mondego a fértil herva.
Quanto pode de Atenas desejar-se
Tudo o soberbo apoio aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.

Uma realidade abonatória sobre a provável estada de Camões na Universidade resulta da impossibilidade de se adquirir uma excepcional cultura sem uma base de instrução que haja desenvolvido a capacidade intelectiva, tornando-a apta para os grandes võos de espírito.
( ... )
Cortesia de commons
No Canto VII, Estâncias 78-87, o Poeta relata, ele próprio admirado, como a experiência o advertiu do que não soubera antes e a determinação que impôs a si próprio. Invoca então as Ninfas do Tejo e do Mondego, a quem roga a força insana e poderosa que o não deixe vacilar. Diz:

Um ramo na mão tinha … Mas ó cego.
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
(… )
E mais adiante:
Dai-me só vós, que eu tenho jurado
Que não mo empregue em quem o não mereça:
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos cantarei.

Contudo, Hermano Saraiva afirmou na sua citada Obra que o episódio do Adamastor, que exorna «Os Lusíadas», e é uma das mais belas e impressionantes criações do Poeta, não é mais do que a explosão do ciúme e desespero de Camões, provocados pelo abandono a que o votou uma dama, de nome Violante de Andrade, casada com D. Francisco de Noronha, ali confundida com Dóris. Tal confusão, afirma aquele Autor, obrigou a censura a omitir a estrofe 55 do Canto V na edição de 1584. Não é este o derradeiro equívoco (?) do sr. Dr. Hermano Saraiva, nem a última ignomínia. Depois do adultério de Violante, sua filha Joana, que nunca existiu, torna-se, por incesto praticado por Camões, uma rival. Aquele explícito Autor vê esta jovem no anagrama Aónia e nos criptónimos Ana, Diana e Iana.

Cortesia de anossaescola
Em 1549, respondendo à mobilização militar ordenada por D. João III, Camões partiu para Ceuta, regressando dois anos depois,  em 1551; em 1553 foi servir na Índia. Diogo de Couto dá-nos um testemunho claro desta infeliz mudança. O «Soldado Prático» lá consigna que a fidalguia estava representada por bastardos sem educação, que íam à Índia monarquiar em poucos dias. Outrora, era costume (...) buscar homens para os cargos e não cargos para os homens. Mas Camões partiu em busca da experiência. Foi conhecer o perigo do mar, os lugares onde tantos heróis tombaram e os homens desleais à Pátria, que regressavam fantasiando combates e requerendo mercês que não haviam conquistado com a espada.
Dezassete anos depois, chegou a Lisboa, em Abril de 1570.
A fama do seu grande poema havia-o precedido. Por intercessão de D. Manuel de Portugal, Camões obteve o alvará do Rei D. Sebastião para a publicação do seu Poema Máximo, que viria a ser exaltado em toda a Europa culta. Bem depressa o poeta começou a subir a Costa do Castelo para entrar na oficina de António Gonçalves, a fim de rever as provas, pois a isso o obrigava o seu pundonor e a honra como cavaleiro - fidalgo da Casa Real com a tença anual de quinze mil reais brancos. Não entendeu assim o Dr. José Hermano Saraiva.

Trata-se de pôr em causa a pudidícia de outra Joana Noronha de Andrade, esta verdadeira e filha dos segundos condes de Linhares, que viveu no convento da Anunciada, sem tomar hábito, mas onde tinha irmãs mais velhas como freiras.
(...)
Diogo Barbosa Machado
Cortesia de wikipédia

O Dr. José Hermano Saraiva pôs em dúvida a dignidade desta Joana, cujos anos seriam poucos, segundo os dados que nos dá de outros filhos e filhas de Violante. Camões só viria a conhece-la, se é que a conheceu, quando regressou do Oriente. Todavia, aquele citado Autor escreveu que ela seria a provável mãe de um filho do Poeta, de nome Pedro Noronha de Andrade, conforme os apelidos maternos. Acrescenta que este Pedro foi um poeta do inicio do século XVII, como registou o Abade Diogo Barbosa Machado, na sua «Biblioteca Lusitana», omitindo o tomo em que leu o registo.
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Cortesia de tertuliabibliofila
Pergunto: Porquê, indigitar Camões como possível pai daquele filho de provável mãe ?...
Pela minha parte, sondei todos os Cantos de «Os Lusíadas» à procura de um filho bem guarnido de mimos poéticos, que me pudesse abonar aquela imprevista suspeita. O nome comum filho ocorre 104 vezes em «Os Lusíadas». Porém, o excerto que penso ser apropriado é aquele em que um filho se lamenta por ver-se desfavorecido da sorte - rogo me perdoem transformar o apelo do invejoso Baco numa imaginária reflexão do nosso Poeta:

E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades generosas,
Hei-de sofrer que o Fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça ?
Canto I, estância 74.

A argúcia do Dr. José Hermano Saraiva entenderá a alteração simbólica das figuras e o expressivo significado daquela reflexão. Camões admirou algumas damas. Como esteta, exigiu que fossem belas e, como grande Poeta e Humanista, também quis que fossem cultas, conhecessem a Arte e a estimassem. Por isso as amou.
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Cortesia de cpas
Feita a justa reposição dos Linhares na linha do brio e honra da Pátria, resta-me agradecer ao Senhor Doutor Arnaldo de Mariz Rozeira o obséquio de facultar-me a cópia de todos os Cantos de «Os Lusíadas», em cujas estrofes figuram os nomes comuns que previu serem-me necessários, facilitando-me enormemente este modestíssimo trabalho.
Muito obrigada. In Margarida Ribeiro, Um Filho de Camões?; Comunicação apresentada à Secção Luis de Camões em 19 de Maio de 1995.

Notas.
  • Américo da Costa Ramalho, Recensão Crítica, Vida Ignorada de Camões, Separata de Humanitas, XXIX-XXX, Coimbra, 1977-1978;
  • José Hermano Saraiva, Vida Ignorada de Camões, Lisboa, 1983.
Cortesia da Secção Luis de Camões da SGde Lisboa/U. de C./BMP 908(469.51)Rib-fil/JDACT