quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Irene Lisboa: «Conto, exercito-me a analisar os casos e as criaturas», mostrando como, ao contar o real exterior, a narradora se exercita (tal como em certas práticas da espiritualidade), procurando as raízes e expansões do seu próprio eu. Solidão é um marco indispensável

(1892-1958)
Aranho, Arruda dos Vinhos
Cortesia de cm-arruda

Irene do Céu Vieira Lisboa foi escritora, professora e pedagoga.
Formou-se pela Escola Normal Primária de Lisboa e depois continuou os estudos na Suíça, França e Bélgica onde se especializou em Ciências de Educação, o que a habilitou a escrever várias obras sobre assuntos pedagógicos. Durante a estada em Genebra, mercê de uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, teve a oportunidade de conhecer Jean Piaget e Édouard Claparède, com quem estudou no Instituto Jean-Jacques Rousseau.

Irene Lisboa dedicou-se por completo à produção literária e às publicações pedagógicas. A escrita dominou toda a sua vida. A obra literária que produziu foi elogiada por alguns dos seus pares como José Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira e João Gaspar Simões, embora nunca tenha tido grande aceitação por parte do público.

Cortesia de sonhar1000
Ao longo da sua vasta obra, escreveu literatura para crianças e jovens, textos de pedagogia, crónicas e novelas centradas na descrição de quadros e personagens da vida comum, mas sempre dando passagem para o núcleo intimista e autobiográfico que unifica toda a obra, a começar pelos dois livros de poemas, de 36 e 37. Com as variações que os diferentes géneros implicam, pode dizer-se que o seu estilo é marcado pela oralidade e pela naturalidade, construídas como efeito retórico que rasura um aturado trabalho de escrita. Isto é desde logo visível nos livros para crianças e jovens, em que a oralidade, muito trabalhada, não se compadece com facilidades nem infantilismos, abordando as mais variadas temáticas de modo a que subjaz profunda informação pedagógica.
Irene Lisboa usou  sob o pseudónimo de João Falco em muitas obras. 

Cortesia de camelecocacola
«O estilo da autora de Solidão caracteriza-se por frases em geral curtas, apresentadas como fragmentos de diálogo ou de monólogo interior, ou então os textos parecem ser o registo imediatista de cenas vistas, mas a que as subtis intervenções críticas ou explicativas da voz narradora dão contornos de anotações fazendo-se ao ritmo da consciência. O próprio sistema de títulos e subtítulos dá indicações nesse sentido, ao usar termos como apontamentos e notas, ou ao remeter para a matéria banal e insignificante. Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma. Não lhe interessa definir exactamente o que escreve nem apresentar obra acabada, e por isso optou, primeiro, por provocatoriamente não distinguir verso e prosa.
Nos volumes Esta cidade!, O pouco e o muito - Crónica urbana, Título qualquer serve para novelas e noveletas Crónicas da Serra está patente a opção pelo tom e pelos géneros menores, com destaque para a crónica e para a narrativa curta, correspondendo a uma concepção muito atenta e pormenorizada do mundo, captado sobretudo pela percepção visual, aquela que melhor permite o distanciamento e o recolhimento do sujeito, revertendo o que observa e anota sobre o íntimo que progride e se ajusta. O efeito de naturalidade assim obtido constitui-se pela recusa dos traços de composição próprios do romance, que para Irene Lisboa implica «deformação e teatralização do pequeno nó da realidade» de que parte, ao que contrapõe a intenção de apenas contar «casos que conheci, que me pus a desfiar tranquilamente». Irene, aliás, acrescentou «Conto, exercito-me a analisar os casos e as criaturas», mostrando como, ao contar o real exterior, a narradora se exercita (tal como em certas práticas da espiritualidade), procurando as raízes e expansões do seu próprio eu.
Cortesia de sosleitoresmurca
A mesma temática intimista e reflexiva é central em Solidão–Notas do punho de uma mulher, em Apontamentos e em Solidão - II, livros autobiográficos em que um sujeito mulher fala de si no vaivém entre o mundo dos outros e o eu íntimo. A solidão traz como corolários o tom elegíaco, sobretudo ao tematizar a queixa e a ausência do amor, mas não impede nunca o olhar desapiedado sobre o mundo e sobre o eu, que se critica quando ocasionalmente cai na autocomplacência.
As novelas autobiográficas Começa uma vida e Voltar atrás para quê? contam os episódios fundadores da infância e da adolescência, nos quais radica este universo. À distância do tempo e da memória, eles narram a história de uma rapariguinha crescendo entre mistérios que rodeiam a sua origem, envolvendo-a na matriz disfórica de afectos desajustados. Sendo uma história pessoal, um caso, ela é também exemplar de um certo tempo português do começo do século XX. Estas narrativas, de técnica fragmentária como todos os livros intimistas da autora, são exemplares do modo de representar uma consciência dilacerada que, mesmo por ser absolutamente moderno, é um dos factores da estranheza e do fascínio que Irene Lisboa vem causando em quem a lê.
Cortesia de sobreorisco 
O nome da autora de Solidão, constitui uma referência inegável para a compreensão da obra de outros escritores que podem filiar-se no seu pendor intimista e na sua atenção ao real das coisas pequenas e banais. O que escreveu permite, na linhagem de Cesário Verde, Camilo Pessanha ou Fernando Pessoa, pensar uma tradição da literatura portuguesa que problematiza as relações entre consciência e mundo.
Solidão é, nesse domínio, um marco indispensável». In Instituto Camões.
Obra literária de Irene Lisboa:
  • Um dia e outro dia - Diário de uma mulher, 1936;
  • Outono havias de vir latente triste, 1937 (ambos reeditados em Poesia - I, 1991);
  • Solidão - Notas do punho de uma mulher, 1939, 4ªed. 1992;
  • Começa uma vida, 1940, 2ª ed. 1993;
  • Esta cidade!, 1942, 2ªed. 1995;
  • Apontamentos, 1943, 2ª ed. 1998;
  • Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, 1955, 3ªed. 1993;
  • O pouco e o muito - Crónica urbana, s/d (1956), 2ªed.1997;
  • Voltar atrás para quê?, s/d (1956), 3ªed. 1994;
  • Título qualquer serve para novelas e noveletas, 1958;
  • Queres ouvir? Eu conto - Histórias para maiores e mais pequenos se entreterem, 1958, 3ªed. 1993;
  • Crónicas da serra, s/d (1958), 2ªed. 1997;
  • Solidão - II, s/d (1974), 2ª ed. 1999;
  • Antologia: Folhas soltas da Seara Nova (1929 -1955), antologia, prefácio e notas de Paula Morão, 1985.

Cortesia de tintafresca
Cortesia do Instituto Camões/JDACT