Joaquim Negrão
Cortesia de antoniocarneiro
«... Foram directamente a Halifax, gastando 28 dias até lá, sem um só instante terem vento favorável (1).
Antero foi quase todo o tempo enjoado, apesar do navio ser muito estável, de dançar pouco. Não lhe foi possível habituar-se ao balanço e, por via de regra, estava deitado (2).
________________
(1) Leio no Comércio do Porto, ano de 1869, que o Carolina chegara ao Porto a 3 de Junho, completando a descarga a 15; e que partiu para Nova York a 7 de Julho, com vários géneros. Isto confirma a narrativa de Joaquim Negrão e o que Alberto Sampaio disse a pág. 21 do In Memoriam. «Por equívoco de datas tão natural nele, (Antero) colocou-a (a viagem à América) na auto-biografia em 1868, mas a verdade é que teve lugar em 1869».
(2) A pág. 446 do In Memoriam, o snr. Batalha Reis fala-nos deste mesmo estado de fraqueza : « O Antero já então (de 1868 para 1869) caminhava pouco, cedendo gradualmente a um estado mórbido intermitente ainda, mas que às vezes, por dias, o impedia de bem se alimentar, e o conservava invalido, deitado de costas sobre a cama, a ler, a cismar, a conversar, a discutir, puxando incessantemente pelos cabelos das barbas, ... e os olhos cerrados, dirigidos vagamente ao tecto, como que perdidos numa visão longínqua». E o snr. dr. Manuel de Arriaga, a pág. 106 da mesma obra, referindo-se a uma noite por ele passada com Antero nas alturas do Cabo Mondego, a bordo duma lancha de pesca, com um mar calmo, duma ardência excepcional, conta como «Antero sucumbiu. A ondulação repetida da vaga, o cheiro nauseabundo do peixe, a debilidade pertinaz do estômago, o frio da noite, prostraram-no completamente. As ânsias do enjoo que por vezes o acometeram, obrigaram-nos a instar com os barqueiros para voltarmos a terra». Mas Antero opõe-se e não o consentiu. Suportou muitas horas de tortura com perfeita serenidade, até ao romper da alvorada!
_____________
A cabeça, porém, sempre livre. De propósito nada levara para trabalhar, nem queria escrever coisa alguma. Negrão é que possuía alguns livros, comprados em Hamburgo, no ano anterior, e destinados ao estudo da língua alemã: gramática, selectas, dicionários. Antero viu-os e perguntou-lhe se se utilizava deles. E, como a resposta fosse negativa, levou-os para a sua câmara e, durante toda a viagem, estudou-os, tomando notas de quando em quando. Dizia que esse estudo não era fatigante porque o não obrigava a pensar. Os seus nervos vibravam contudo duma forma agudíssima, e o seguinte facto demonstra-o bem. Toda a península da Nova Escócia é uma região baixa, coberta de densas florestas de pinheiros, abetos e outras árvores semelhantes. Ora, num dado momento, como soprasse vento de terra, Negrão sentiu o aroma dos pinhais e disse que deviam estar perto da costa. O que Antero se apressou a confirmar:
- —Já ha muito tempo que me cheira a resina. Não há dúvida.
Todavia só quatro horas depois é que avistaram terra.
Cortesia de mundolusiada
A chegada do Carolina a Halifax coincidiu com a estada ali de uma alta personagem oficial que muito deu que fazer às gentes da terra. Havia grandes festejos, muita tropa nas ruas, muito tiro a bordo dos navios de guerra e multidões por toda a parte. Tudo isto irritava Antero que não gostava de festas, nem de, barulho. Passaram pois alguns dias a bordo, onde sempre tiveram câmaras confortáveis e bom passadio. Apesar de isso Antero continuava a alimentar-se mal e a ter digestões dificílimas.
Partido o figurão e sossegada a terra, começaram os dois companheiros de viagem a passear pela cidade, dando-se então um episódio curioso com o poeta, momento único de mau humor durante mais de quatro meses, desde a abalada da Foz até ao regresso. Passou-se o caso com uma espécie de cicerone, Mr. X, que lhes havia sido recomendado pelo consulado.
Halifax
Cortesia de membersvirtualtourist
Este homem, às primeiras entradas, era todo facilidades fosse para o que fosse. Assim, falava-se uma vez do veado gigante das regiões do norte, o alce, e alguém disse que, em certo lugar próximo de Halifax, havia muitos desses animais. Negrão que, como já se viu atrás, era grande caçador, sentiu logo desejos de ir caçá-lo e Mr. X apressou-se a assegurar-lhe que podia arranjar uma partida e reunir índios para os acompanharem; e até se ofereceu para os levar ao ponto indicado.Assente o dia do passeio. Negrão e o cicerone meteram-se numa carruagem e seguiram para lá. Antero não ia porque detestava tais divertimentos. Ora, a meio caminho, já Mr. X prevenia Negrão de que aquela caça era muito perigosa; ao que este respondeu:
- —Não tem dúvida, eu atiro. E, demais, sou eu que caço; se não quiser, não venha.
Chegados ao local em que deveriam encontrar os alces, encontraram mas foi um índio vestido à europeia com o qual Mr. X esteve falando, provavelmente na língua autóctone. Negrão não entendeu a conversa. Pouco depois vinha porém o cicerone, assaz pesaroso, dizer-lhe que os alces se tinham retirado e que não podia haver caçada …
Negrão, a troco de duas garrafas de brandy, comprou ao índio um arco com suas flechas e um tomahawk.
E voltaram para Halifax.
Cortesia de lutadoresdarepublica
De outra vez, os dois amigos passeavam em companhia de Mr. X, quando se cruzou com eles uma mulher elegantíssima, moça e formosa, que olhou para Antero com insistente simpatia, talvez seduzida pelo seu aspecto verdadeiramente insinuante. E é para notar que também ele ficou impressionado: achou a mulher encantadora, mostrando desejos de saber quem era. Mr. X afirmou desde logo que a conhecia pessoalmente e que, se o poeta quisesse, poderia apresentá-lo. E combinaram a apresentação. Mas, quase à hora aprazada, aparecia Mr. X muito consternado, desculpando-se de não poder acompanhar Antero: a linda moça era sobrinha dum amigo seu, o grão mestre da Maçonaria, e o nosso homem não queria comprometê-la.Antero, cuja admiração pela mais bela metade do género humano não pecava por frequência, ficou todavia furioso e com vontade de dar duas bofetadas no aldrabão do cicerone.
Não as deu contudo. Sossegava pouco depois e de todo esquecia a linda senhora.
Da sua estada na Nova Escócia reteve porém Antero uma recordação luminosa e doce que Eça de Queiroz assim descreve a pág. 499 do In Memoriam:
- «Percorre a costa da América até á Nova Escócia; e aí, um domingo, tem uma visão que nunca esquece, a duma cidade puritana (Halifax ou Lunenberg), silenciosa, como adormecida no Senhor, toda de tijolo cor de rosa sob um céu cor de pérola, com fundas avenidas mais pensativas que as dos Elyseos onde os namorados passeiam, numa mudez de sombras, de dedos enlaçados, de pálpebras baixas, respirando sem outro desejo a flor da sua emoção. Quantas vezes Antero me contava dessa piedosa e suave cidade, e do longo apetite que ela repentinamente lhe dera de quietação eterna!»
Alberto Sampaio, a pág. 21 do mesmo livro, atribui à passagem por Halifax e Nova York, onde Antero «viu a grande democracia americana», e à «exuberância da sociedade que acabava de visitar», as disposições em que meses depois ele se encontrou para se lançar na propaganda socialista.
Em Halifax, o navio meteu gesso para Nova York, e ali chegou com uma viagem de sete a nove dias.
Nova York
Cortesia de artgeist
Antero sentia-se algum tanto melhor; ficava porém quase sempre a bordo. Por vezes gostava de passear no Central Park que, embora nesse tempo distasse da cidade mais dum quilómetro, já tinha esse mesmo nome. Sabia-se que ele em breve havia de ser, como foi ou é, o ponto central da localidade. Estava então ali instalada uma exposição industrial, onde funcionavam e produziam todas as máquinas expostas. Antero passava horas esquecidas entretidíssimo a observar os vários trabalhos.Enquanto esteve em Nova York teve por vezes ensejo de manifestar os seus constantes escrúpulos e a sua timidez.
Uma tarde, na Exposição, o seu amigo e companheiro pensou em adquirir uma máquina de fazer café, que o fazia efectivamente delicioso. Mas a máquina era muito cara. Negrão e Antero provaram contudo a excelente bebida, fornecida gratuitamente ao público numas xícaras pequeninas. Voltaram no dia seguinte e repetiram a prova. Ao terceiro dia, porém, Antero imaginou que o homem olhava para ele atentamente. É porque já devia conhecê-lo. E não tomou mais café. Negrão, contudo, verificou que era impossível, dada a multidão que diariamente passava por ali, conhecer o homem todas as pessoas que se lhe dirigiam e a quem ele explicava a teoria da máquina. Porque lhe explicou várias vezes, sem nunca se recordar de que já o havia feito. E Negrão provava sempre o café.
Cortesia de trintaanosdepois
De ali em diante rarearam os passeios de Antero, e Negrão começou a suspeitar que se lhe teria acabado o dinheiro trazido do Porto. Foi pois ter com ele e, humanamente, pôs a sua bolsa à disposição do poeta. Mas Antero negou-se a aceitar: não sabendo se lhe poderia pagar, suspeitando até que morreria em breve, só aceitava a hospedagem a bordo. Essa sim, dinheiro por forma alguma. E não houve meio de o demover de tal resolução.Ele ... desejara fixar-se na América, trabalhando fosse no que fosse; e chegou a proporcionar-se-lhe forma de o conseguir em termos razoáveis. Por intermédio dum empregado do nosso consulado, veio a saber da existência, em Nova York, dum banqueiro riquíssimo que tinha importantes negócios no Brasil e queria dar a dois filhos seus o completo conhecimento da língua portuguesa. O milionário receberia em sua casa o professor, com o ordenado que combinassem; a demora era de dois para três anos e Antero, se quisesse aceitar a oferta, podia marcar um preço elevado. Disse ao principio que sim, que aceitava e que iria, de ali a pouco, combinar as condições do contracto. Mas, dias depois, como se achasse mais doente e receasse não ter forças para bem desempenhar o cargo de professor, declarou que desistia, que declinava a oferta. Sentia-se ao mesmo tempo irascível e impaciente, sem a necessária serenidade para aturar rapazes.
E, já por falta de dinheiro, já por falta de forças, deixou de visitar Nova York, onde pouco viu. Resignado, ficava a bordo, todo entregue ao alemão». In António Arroyo, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto.
Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT
Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT