sábado, 12 de fevereiro de 2011

Oliveira Martins: Os Filhos de D. João I. Parte III. «Os três mais velhos eram homens feitos (1412). D. Duarte tinha 21 anos, D. Pedro 20 anos, D. Henrique 18 anos. Os dois pequenos, D. João (doze anos) e D. Fernando (nove) não se contava com eles ainda: estavam a cargo da mãe, educadora já encanecida pelos seus 54 anos»

Cortesia de paulocampos

Com a devida vénia a Paulo Campos. Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967.

Mas as divisas da corte vão estudar-se pelo que revelam, e não como simples joguetes quase infantis. Tudo
era sério. A rainha adoptara o mote, conciso e simples como ela própria, pour bien: o mote que o rei mandou pintar no tecto da sala de Sintra, e que lhe sugeríra a tangente salvadora, quando fora o caso do beijo furtado à dama. Pour bien, para o bem, era a suma da existência dela, consumida em afeiçoar os filhos às regras do dever e da religião. Désir, foi o mote de D. Pedro, enigmático, ou vago, como efectivamente se desdobrou com o tempo o seu carácter, oscilando entre as obrigações do dever, e as congeminações nebulosas de uma inteligência crítica. Depois de Ceuta, adoptou por divisa, ou empresa, um rochedo atravessado por uma espada brandida pela mão que sai das nuvens, com a legenda Acuit ut penetret. É complicado, como o seu espirito; mas o timbre do seu uso foram as balanças, por uma devoção especial a S. Miguel, em cujo altar o depuseram moribundo, em criança; e provavelmente pelo amor constante da justiça e da ponderação que sempre o distinguiu.
O infante D. João adoptou por mote J'ai bien raison, e na sua vida breve cumpriu-o; como o cumpriu o infante D. Henrique, tomando para si Talent de bien faire, que traduzido significava, não a ciência de proceder com acerto, mas sim a vontade de obrar com justiça. A primeira traducção foi, porém, historicamente, mais verdadeira.

Cortesia de paulocampos 
Para si, o rei quis Il me plait e com razão, porque raríssimos viveram mais a seu gosto. Tudo lhe saiu bem, a esse homem feliz. Conquistou o reino, e sentou-se no trono aclamado pelo povo inteiro. Acertou casando, e teve a mais bela geração de filhos. Nun'Alvares coroou-o, e João das Regras sancionou com leis o que o condestável traçara com a espada. Velho e viúvo, com os filhos à roda, comete a temeridade de ir a Ceuta, e, conquistando-a com a máxima facilidade, deixa em herança ao reino o caminho da glória patente.
E no decurso do seu longo reinado de quase meio século, transforma os costumes, as leis e até a cronologia, a este povo, que recebera agonisante, e que entrega à história reconstituído pela introdução de ideias morais novas, e das novas leis que no seu tempo se restauravam na Itália, fazendo outra vez reviver o império das noções abstractas do direito antigo sobre que ia assentar soberana a monarquia.
É de 1426 a carta régia em que D. João I remete à câmara de Lisboa dois livros com as leis do código Justiniano, a glossa e as conclusões de Bartholo «para por elas se fazerem livrar os feitos e dar as sentenças».

Cortesia de cercarte
Eram também as auroras do imperialismo que viria a desabrochar um século depois sob o influxo das ideias cristâs, com os mesmos caracteres, porém, que tivera na antiguidade, para levar também, outra vez e deploravelmente, os povos latinos à perversão de um absolutismo antipático. Nesta manhã de luz nada disso se descortina ainda. A fé é viva, o entusiasmo ardente. O vento fresco das impressões novas agita os pensamentos, e, passando por sobre o país, vai beijar os mares vizinhos, desenrolados perante a vista como uma tentação e um enigma.
O espírito generoso da cavalaria, importado de fora, toma entre nós feições e objectos indígenas. A empresa consiste num franco navegar para o bem, com as velas cheias pela viração da ciência e da fé, que ainda sopravam acordes.

Cortesia de numisgaia
Tanto isto é assim que, depois de celebradas as pazes de 1411 com Castela, o rei projectava levar a efeito um grande torneio internacional, festa magnífica em que armaria cavaleiros os três filhos mais velhos, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique;
  • mas estes observavam que festas não eram empresas, e o grau de cavalaria queriam ganhá-lo, não queriam devê-lo apenas a uma ceremónia ritual segundo os cânones cortesãos.
Mas, que empresa? perguntava a si própria essa gente, como ricos, sem saber em que gastar a opulência de força e vida que os consumia. E um dos três conselheiros da coroa, João Afonso de Azambuja, que com o arcebispo de Braga e João das Regras constituíam o ministério de D. João I, segredou-lhe ao ouvido:
  • Ceuta! 
Reconquistar Ceuta, que fora a porta aberta à traição para os mouros entrarem na Espanha, seria a mais gloriosa empresa, continuando, nos Algarves d'além mar, a guerra de tantos séculos que dera por fim a Portugal os Algarves d'aquém. Contra o mouro de Granada não se podia ir, a menos de voltar a acender a guerra com Castela, que já o considerava presa sua. O segredo e a reserva, toda a reserva, eram, porém, indispensáveis para tão arriscada empresa. O rei meditava, e piedosamente ouviu os seus confessores e os seus letrados mais íntimos:
  • mestre frei João Xira,
  • o doutor frei Vasco Pereira, 
  • João das Regras.
Todos concordaram que sim; faltava ouvir os filhos.

Cortesia de clubehistoriaesvalp
Os três mais velhos eram homens feitos (1412). D. Duarte tinha 21 anos, D. Pedro 20 anos, D. Henrique 18 anos. Os dois pequenos, D. João (doze anos) e D. Fernando (nove) não se contava com eles ainda: estavam a cargo da mãe, educadora já encanecida pelos seus 54 anos.  O pai, que tinha um ano mais, começava a sentir os achaques da velhice, custando-lhe já o trabalho do conselho e do espacho. Atribuiam à mordedura de um cão danado, que o fizera sofrer durante 5 anos, os espasmos ou síncopes de que por vezes era assaltado. Talvez fosse um cardíaco, hipótese verosímil com a vida que teve, cheia de agitação e duramente emocionada por largos azares. O conde de Barcelos, que nesta era contaria 30 anos, estava fora da corte, nas suas terras, em Chaves, onde enviuvara de D. Beatriz, a filha do condestável, falecida de parto. A veneração pelo pai continha-o, no seu despeito pela preferência dada aos irmãos. Também ele era filho de D. João I... Fora afinal legitimado, aos 25 anos; mas não era filho de D. Filippa, a implacável senhora!». In Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967.

Cortesia de J P Oliveira Martins/Paulo Campos/Universidade de Toronto/JDACT