domingo, 17 de abril de 2011

Camilo Pessanha: Dez cartas de um Poeta na meia idade. «Chegado à meia-idade, Pessanha é ainda um poeta inédito. A Clepsidra só será publicada, graças aos cuidados de Ana de Castro Osório, em 1920. Mas a sua poesia já se dera a conhecer, em Portugal, a alguns dos leitores mais aptos a reconhecer-lhe o génio»

Cortesia de poemargens

Com a devida vénia a Luís Miguel Queiroz.

Notas de viagem, apreciações estéticas, comentários políticos, confissões íntimas. As dez cartas de Camilo Pessanha a Carlos Amaro que a Biblioteca Nacional comprou vieram enriquecer substancialmente a exígua correspondência do poeta. Seis delas são inéditas.

«A Biblioteca Nacional (BN) adquiriu recentemente dez cartas enviadas por Camilo Pessanha ao seu amigo Carlos Amaro, um acervo que esteve durante décadas na posse de uma filha do destinatário que morreu em 2008. Se tivermos em conta quer a importância da obra de Pessanha, quer a exiguidade da correspondência que deixou, tratar-se-ia sempre de uma aquisição crucial. Acresce que mais de metade destes manuscritos não haviam sido transcritos e nunca foram publicados, incluindo uma extensíssima carta, enviada em Março de 1912, que se estende por 40 páginas, em folhas aquadradadas de pequeno formato. É a mais longa das pouco mais de 70 cartas que se conhecem do poeta.

O trabalho de transcrição está a ser feito por Daniel Pires, a quem se devem inúmeros estudos sobre a vida e obra de Pessanha, infelizmente pouco acessíveis ao grande público, dado que muitos deles foram publicados em Macau e quase não circularam em Portugal. O investigador tenciona publicar dentro de alguns meses a correspondência integral do poeta, um conjunto que considera ter sido «muito significativamente enriquecido» com a dezena de manuscritos que a BN agora adquiriu, tanto mais que, afirma, «são cartas em que Pessanha dá a conhecer as suas posições políticas, exprime opiniões sobre questões sociais e alude à sua poesia e às suas opções estéticas».

Cortesia de macauantigo
Numa delas, datada de Agosto de 1908 e enviada de Leça da Palmeira, num dos vários períodos em que regressou a Portugal para tentar restabelecer a sua saúde precária, o poeta conta ao amigo:
  • «Sabe que, à força de matutar, na última noite que passei em Lisboa, vim a descobrir que o ritmo dos meus decassílabos que tanto me preocupavam é o verso de Verlaine: "D"une douleur on dirait... orpheline?" Nas edições actuais da poesia de Verlaine, este verso lê-se: "D"une douleur on veut croire orpheline».
Se o nome de Carlos Amaro (1879-1946) hoje pouco dirá à generalidade dos leitores, a verdade, como veremos, é que o facto de ser este o destinatário das cartas só lhes aumenta o interesse. Dramaturgo de algum mérito, Amaro era uma dúzia de anos mais novo do que Pessanha e conheceu-o através do irmão mais novo do poeta, Manuel Luís, de quem foi colega de curso em Direito. É possível que a trágica demência deste irmão de Pessanha, revelada em 1908, tenha contribuído para aproximar o poeta de Carlos Amaro, que com ele convivera.
Várias destas cartas dão testemunho da aflição com que Pessanha vivia o drama de Manuel Luís. Em Fevereiro de 1909, a bordo do navio holandês que o leva de regresso a Macau, escreve:
  • «Ao abismo abominável da desgraça onde se debate meu irmão não pode chegar nenhuma destas tristes anotações de viagem, que ele estimava mais do que ninguém. Nem sequer saberá quanto eu lhe quero, e quanto a lembrança do seu horrível enervamento permanentemente me esmaga».
Nesses primeiros anos da República, era, salienta Daniel Pires, um homem muito prestigiado a nível académico e um político influente, que integrara a Assembleia Constituinte de 1911. É também a este último, ao político, que Pessanha se dirige na já referida longa carta de 1912, esperando que este possa interceder a seu favor.

A lei da época obrigava os juristas a cumprir comissões no continente e nas colónias, sob pena de não progredirem na carreira ou de se verem mesmo impedidos de exercer. Pessanha sabia que ia ser nomeado para Moçambique e, numa fase da vida em que já estava habituado às rotinas da minúscula Macau, por muito que as detestasse, com a saúde seriamente afectada, e decerto já dependente do ópio, dispunha-se a mover todas as influências possíveis para não ter de abandonar o território.

Cortesia de purl
Consciente de que a sua situação financeira não lhe permitia abandonar a carreira, Pessanha confessa a Carlos Amaro (a transcrição de todos excertos, salvo indicação em contrário, é de Daniel Pires):
  • «Chega mesmo a parecer-me estupendo que eu me tenha deixado chegar à idade normal da aposentação (para quem faz carreira pelo ultramar) sem fazer nunca o mínimo de esforço para me garantir alguma estabilidade de posição e sem que, nas condições precárias de uma tal existência, não tenha vindo ainda uma forte trombada escangalhar-me o barco».
Noutra das cartas inéditas deste lote, há quatro que haviam já sido transcritas por António Dias Miguel nos anos 50, mas com algumas lacunas impostas pela filha de Carlos Amaro, Pessanha justifica-se: «Claro está que à minha vida precisava de dar um objectivo, sob pena de morrer de tristeza. E qual outro poderia ser aqui senão estudar a língua chinesa, os costumes chineses, a arte chinesa? A solidão intelectual e moral nestes meios é absoluta. Para aqui só vem daí a ínfima escória... Tenho, pois, estudado com furor, até onde mo permitem as minhas forças escassas. Aprendi a falar a língua chinesa (falo correntemente o dialecto cantonense), e, um pouco, a ler e escrever. Tenho meia dúzia de traduções, que são actualmente o único escrito meu que desejaria ver publicado. É claro que tudo isto, que é nada mas me tem custado a vida, me seria fora daqui absolutamente inútil: prende-me, pois, naturalmente a este remoto exílio». Por esta altura, a carta é de Novembro de 1912, tinha já escrito alguns dos mais extraordinários poemas da língua portuguesa, mas o que queria mesmo era publicar as suas traduções, prioridade que confirma em nova carta a Carlos Amaro, no final desse ano:
  • «Bem desejaria publicar um dia meia dúzia de pequenas traduções; mas a empresa, a ser a coisa como eu a tenho esboçada, é cheia de dificuldades».
Toda a correspondência de Pessanha para Carlos Amaro se situa entre Fevereiro de 1907, quando o poeta tinha 39 anos, e Dezembro de 1912, quando já perfizera 45. Chegado à meia-idade, Pessanha é ainda um poeta inédito. A Clepsidra só será publicada, graças aos cuidados de Ana de Castro Osório, em 1920. Mas a sua poesia já se dera a conhecer, em Portugal, a alguns dos leitores mais aptos a reconhecer-lhe o génio.

Cortesia de testesdeportugues
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A admiração de Pessoa por Pessanha levou-o mesmo a endereçar-lhe uma longa carta, em 1915, pedindo-lhe que autorizasse «a inserção, em lugar de honra, de alguns dos seus admiráveis poemas» no terceiro número de Orpheu. A revista acabou por não sair. A razão é simples: o homem em quem Pessoa reconheceu um dos seus mestres tinha provavelmente mais em que pensar na altura, e, tanto quanto se sabe, nunca lhe respondeu. No entanto, acabaria mesmo por ser a geração de Orpheu a revelar a poesia de Pessanha. Nessa sua carta de 1915, Pessoa evoca um encontro com o poeta mais velho, durante o qual o ouviu recitar as suas coisas, e explica que obteve, «pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas». Ou seja, tudo indica que Amaro foi, por assim dizer, o elo de ligação entre Pessanha e os homens do primeiro modernismo.

Algumas das primeiras cartas desta série valem, sobretudo, pelas impressivas notas de viagem. Pessanha conta, por exemplo, que viu:
  • «no Mar Vermelho, e atravessando do lado de África para o da Ásia, um bando de toninhas, marchando sem destino certo, e parece que com etapas de antemão designadas, em fila cerrada e a galope, como por uma estrada um longo esquadrão de cavalaria» (transcrição de Dias Miguel).
  • Na mesma carta, evoca o «delicioso e efémero efeito de luz» de vários arco-íris simultâneos e suspira: «Quem fosse capaz de o fixar em dois versos transparentes».
  • E mais à frente, quando se lamenta de que «a vida de bordo entorpece, embrutece», dir-se-ia que caímos de repente no Opiário de Álvaro de Campos, que Pessoa bem podia ter dedicado a Pessanha.
As cartas mais violentas são as de 1912, nas quais Pessanha, que compartilha dos ideais republicanos de Amaro, verbera a monarquia agonizante e, em particular, a Igreja Católica. «É necessário destruir à machadada, à mocada, ao pontapé de grandes botas ferradas, essa velha estrutura das convenções, a qual nem por ser de tábuas podres deixa de ser um cadafalso, e de incessantemente funcionar. E o ataque deve ser dirigido de preferência, e sempre, contra essa abominável ficção religiosa, que é ainda a trave mestra da infame construção» (transcrição de Fátima Lopes, da BN).

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Morreu em 1926, adormentado pelo ópio e decerto indiferente à eventual posteridade dos seus versos. Mas estes iriam ecoar em sucessivas gerações de poetas portugueses, marcando os autores de Orpheu e da Presença e, depois, poetas como Eugénio de Andrade, seu assumido herdeiro, ou, para referirmos um nome revelado já no século XXI, Manuel de Freitas, cuja poesia está cheia de alusões a Pessanha, como a desse seu poema em que «voltam, desoladas, a florir» as mesmas rosas bravas que «floriram por engano no célebre soneto da Clepsidra». In Luís Miguel Queiroz, Jornal Público, Ípsilon 29/9/2009.

Cortesia de jornal Público/JDACT