(1521-1577)
Cortesia de jdact
Com a devida vénia a José Maria Rodrigues.
«Para festejar o restabelecimento da saúde da infanta, escreveu Camões a bela canção 19, que o visconde de Juromenha publicou pela primeira vez:
Porque a vossa belleza a si se vença.
Tais extremos mostrastes,
Que mais bella ficastes
Co passado rigor desta doença.
Assim, depois, a descorada rosa.
Se reverdece, fica mais formosa;
Assim, depois do inverno e seus rigores,
Se mostra a primavera com mais flores ;
Assim, depois que eclipse o sol padece,
Com mais formosos raios resplandece.
Já de vossa saúde o sol se alegra ;
E, se negro vestia,
Se veste de alegria,
E se mostra mais clara, a noute negra.
Os campos secos florcceis, senhora.
Sem flores já enferma a sua Flora.
Também os elementos se alegraram,
Que o vosso mal sentiram e choraram.
Alegre canta o pássaro mais rudo;
Tudo se alegra, ou vós alegrais tudo.
Alegrais terra e ceo co as luzes bellas
Desses olhos formosos,
Que são tão milagrosos,
Que dão flores á terra, ao ceo estrellas.
Ao Tejo, que ainda tem maior ventura,
Dais o retrato dessa formosura.
Que é de riquezas bem maior thesouro.
Que o levar as areias do fino ouro.
Pois tudo enriqueceis, senhora, vemos
Que sois mais rica e tendes mais extremos.
Festeja o mesmo Amor vossa ventura
E a saúde, de soberba nella,
Se mostra já mais bella
E se enriquece em vossa formosura.
As Graças, coroadas de mil flores,
Vos coroam por Deusa dos Amores
E vos dão o que o vosso abril lhes dera.
Que também sois das Graças Primavera.
Já que alegrais a tudo com saúde,
Tudo se alegre e ella não se mude.
jdact
Como se vê, nesta canção o poeta não alude ao seu amor pela filha de D. Manuel. É que naturalmente foi escrita, para ser lida ou ouvida pela ilustre senhora. Com o restabelecimento da saúde da infanta relaciona também W. Storck o passeio no Tejo, que teria dado origem ao soneto 309 da edição de Juromenha.
Eis como elle se lê na fonte donde este indefesso camonista o extraiu:Em hu batel q com doce meneio
o aurífero Tejo deuidia,
vi belas damas, ou melhor diria,
belas estrelas, e hu sol no meio.
As delicadas filhas de Nereo
co mil coisas de doce armonia
ião amarrado a bela companhia
(q se eu não erro), por honrralas veio.
O fermosas Nereidas, q cantando
lograis aquela vista tão serena
q a vida em tantos males quer trazerme:
Dizeilhe q olhe q se vai passando
o curto tempo ; e a tão longa pena
o esprito he prõpto, a carne enferma.
Anteriores também ao exílio, mas já do tempo em que a infanta, ao ver o poeta, punha os olhos no chão, são, creio eu, estas redondilhas:
A umas suspeitas:
Suspeitas, que me quereis ?
Que eu vos quero dar logar
Que, de certas, me mateis,
Se a causa de que nasceis
Vós quisésseis confessar.
Que de não lhe achar desculpa
A grande magua passada
Me tem a alma tão cansada,
Que, se me confessa a culpa,
Te-la-ei por desculpada.
Ora vede que perigos
Tem cercado o coração,
Que, no meio da oppressão,
A seus próprios inimigos
Vai pedir a defensão !
Que, suspeitas, eu bem sei,
Como se claro vos visse,
Que é certo o que já cuidei.
Que nunca mal suspeitei.
Que certo me não saísse.
Mas queria esta certeza
Daquella que me atormenta.
Porque, em tamanha estreiteza.
Ver que disso se contenta
É descanso da tristeza.
Porque, se esta só verdade
Me confessa, limpa e nua
De cautela e falsidade,
Não pode a minha vontade
Desconforme ser da sua.
Por segredo namorado
É certo estar conhecido
Que o mal de ser engeitado
Mais atormenta, sabido.
Mil vezes, que suspeitado.
Mas eu só, cm quem se ordena
Novo modo de querella,
De medo da dor pequena
Venho a achar na maior pena
Refrigério para ella.
Já nas iras me inflammei,
Nas vinganças, nos furores,
Que já, doudo, imaginei ;
E já, mais doudo, jurei
De arrancar da alma os amores.
Já determinei mudar-me
Para outra parte, com ira.
Despois vim a concertar-me
Que era bom certificar-me
No que mostrava a mentira.
Mas, despois já de cansadas
As fúrias do imaginar.
Vinha emfim a rebentar
Em lagrimas magoadas
E bem para magoar.
( ... )
E assi vou desesperado,
Porque estes são os costumes
Do amor, que.é mal empregado;
Do qual vou já condemnado
Ao inferno dos ciúmes.
jdact
Se o tresloucado poeta, quando se achava ainda na fase idílica, não podia sofrer que a infanta a ninguém tratasse com desamor, antes a todos tivesse afeição e mostrasse um coração cheio de mansidão, cheio de amor, e pedia à formosa e amável senhora que, para o distinguir dos outros, o tratasse com desfavor e lhe mostrasse um ódio esquivo, que impressão lhe não devia causar a mesma norma de proceder, agora que ele era realmente tratado pela forma como, por despeito, havia sollicitado?
Daqui a suspeitar o poeta:Ser por outrem desamado,
daqui a supôr que o desagrado que a infanta lhe mostrava tinha por motivo a preferencia dada a outrem, muito pouco ia. Não era preciso para isso possuir uma imaginação tão ardente como a de Camões». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT