A Terra Nova no planisfério anónimo português de 1502
Cortesia de institutocamoes
Viagens à Terra Nova
Localizada entre os paralelos de 51º 35’ N e 46º 36’ N, na parte nordeste do Continente americano, a Terra Nova é hoje uma parte de uma província do Canadá constituída por uma ilha encravada no Golfo de S. Lourenço, com uma costa recortada virada para o Atlântico, povoada de densos arvoredos. Sabemos hoje que os Vikings ali chegaram em tempos remotos, provavelmente no século X ou XI, mas a sua existência permaneceu no domínio das lendas fantásticas ou vagas referências imprecisas até à sua representação cartográfica no planisfério português anónimo de 1502, conhecido por «Cantino».
Até ao final do século XV o oceano ocidental foi pouco mais do que um lugar de sonho dos marinheiros nostálgicos de um paraíso perdido. Buscar o que está para além do «mar tenebroso» e ir atrás do pôr do sol fascinante foi certamente um desejo contido, mas omnipresente no imaginário do homem europeu. Está patente nas descrições fantásticas, como a de al-Idrisi, as sagas nórdicas, as lendas de S. Brandão ou os mitos da Ilha das Sete Cidades, Satanazes e outras, mas teve uma expressão mais concreta nas expedições do século XV, levadas a cabo por portugueses, espanhóis, ingleses ou mesmo italianos.
Cortesia de promoview
Em Portugal temos notícias várias de navegadores aventureiros que, aparentemente, viajaram em direcção ao ocidente. São múltiplas as referências a expedições que reivindicam a descoberta de ilhas que não sabemos onde se situam ou se alguma vez foram verdadeiramente avistadas. Em 19 de Fevereiro de 1462, um tal João Vogado requer a Afonso V os direitos de donatário das ilhas do Lobo e Caprária, que tinha avistado numa anterior viagem e que pretendia procurar de novo, para delas tomar posse. O rei concedeu-lhe o requerido mas as ilhas nunca apareceram. E há muitos mais casos deste tipo que, naturalmente, não eram regateados pela coroa que as olhava como benefícios baratos a premiar servidores esforçados. Mas algumas destas referências configuraram hipóteses mais concretas que alimentam o jogo historiográfico internacional das prioridades de «descobrimento». Nessa situação está a eventual descoberta da Terra Nova em 1471 ou 1472 por João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem, numa expedição conjunta Luso-Dinamarquesa efectuada a pedido de D. Afonso V. A hipótese é levantada a partir de uma carta enviada a Clemente III da Dinamarca em 1551 (onde se fala de uma iniciativa das duas coroas para explorar o Atlântico Norte nas datas referenciadas) e de uma referência de Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra (1590), onde diz:
- «E vindo João Vaz Corte Real do descobrimento da Terra Nova dos Bacalhaus, que por mandado de el-rei, foi fazer, lhe foi dada a capitania d’Angra».
Esta informação é tardia em relação ao eventual acontecimento e não é corroborada por nenhum dos documentos existentes que dizem respeito a João Vaz, não nos parecendo que deva ser levada em conta para justificar a precoce descoberta.
Cortesia de universodahistoria
Nas últimas décadas do século XV, as viagens portuguesas de exploração da costa africana – numa tentativa de encontrar um caminho para a Índia – tiveram uma via concorrente na busca de um caminho pelo ocidente que chegasse à parte mais oriental da Ásia. As viagens de Cristóvão Colombo são um testemunho do interesse manifestado neste caminho, mas ocorreram numa latitude que não alcança a Terra Nova. Foram feitas aproveitando outros ventos e outras correntes que não davam acesso directo aos mares setentrionais. Contudo, a Inglaterra também fez as suas tentativas e por uma via que pode ter alcançado a costa nordeste do continente americano, justamente na região que estamos a tratar. As condições meteorológicas do Atlântico Norte não são favoráveis a uma navegação directa, a um rumo oeste, desde a Grã-Bretanha até à América, mas os ingleses conheciam o caminho das ilhas Faroé e da Islândia, onde iam pescar sazonalmente, a partir de onde já é possível seguir para oeste e sudoeste. Naturalmente que foi esta circunstância que despertou a atenção de Giovanni Cabotto levando-o a um entendimento com os comerciantes de Bristol e à apresentação a Henrique VII de Inglaterra de um projecto para explorar os mares ocidentais. O embaixador espanhol na corte inglesa, numa carta que escreve aos Reis Católicos, em Janeiro de 1496, dá-nos conta da presença de Cabotto, dizendo-nos que tentava convencer o rei a financiar uma expedição para ocidente, e em Março desse mesmo ano é passada a carta patente que autoriza o italiano a navegar para «todas as partes, regiões e costas do oriente, ocidente e norte [...] para procurar, descobrir e indagar quaisquer ilhas, países, regiões ou províncias de pagãos e infiéis». Em 23 de Agosto de 1497, Lorenzo Pasqualigo, mercador veneziano, escreve que «o nosso veneziano [Cabotto] que partiu de Bristol num pequeno navio para procurar novas ilhas, regressou e diz que descobriu terra firme a 700 léguas daqui, e que é o país do Grande Can [China]».
Cortesia de mssanmarino
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Naturalmente que a reivindicação de descoberta se prende com um interesse de tomar posse do território em si, mas a acção de Gaspar Corte Real é confirmada por um documento da chancelaria de D. Manuel, datado de 12 de Maio de 1501, e por cartas de Alberto de Cantino (o mesmo que adquiriu o planisfério em 1502) e Piero Pasqualigo, dois italianos que nessa altura estavam em Lisboa. Tanto quanto é possível apurar, foi efectuada uma viagem em 1500, que foi detida pelos gelos árcticos, e outra em 1501 (saiu de Lisboa a meados de Março), com três navios. No final do Verão, Gaspar Corte Real mandou dois deles para Lisboa e continuou a sua exploração, não se sabendo mais nada do seu destino (hoje, conhecendo as condições meteorológicas da região, podemos adivinhar que terá naufragado vítima de um dos numerosos ciclones extra-tropicais que por ali passam a partir de Outubro). No ano seguinte, seu irmão Miguel obteve autorização do rei para o procurar, mas teve igual fim: desapareceu nos mares do Atlântico Noroeste. Vasqueannes Corte Real (irmão dos anteriores) ainda pediu para continuar as buscas, mas D. Manuel não o autorizou e assumiu ele próprio essa missão. Na verdade as viagens à Terra Nova, a partir de então, passaram a ser frequentes, e é de crer que as motivava um interesse específico, que nada tem a ver com a procura de uma passagem para a Ásia. Portugal consolidava a rota do Cabo da Boa Esperança para a Índia, e os navios que buscavam o noroeste do Atlântico vão à pesca do bacalhau». In Luís Jorge Semedo de Matos, Instituto Camões.
Cortesia de Instituto Camões/JDACT