Cortesia de ephemerajpp
«D. João e a sua morte são a filosofia do subjectivo e a do objectivo: a moralidade do facto está no momento solene da história do espírito, não no castigo do devasso. A devassidão e os crimes de D. João são metade só do homem, e metade necessária à outra do heroismo e do louco amor. Não é o facto de D. João ser malvado que importa a sua condenação; o que o condena é a razão por que ele é malvado, razão necessária de malvadez. O herói é por força um facínora.
O humanismo que respira o «Quijote» é a atmosfera embalsamada em que vive a Renascença. Na Morte de D. João respiramos sim o século XIX, mas a antitese é incompleta porque não foi profunda a compreensão do herói. O autor viu D. João com olhos de artista, e logo notou como com a guitarra ele conquistava todas as moças, como as perdia todas, como era um poço de imundícies; e foi a esse herói da literatura que deitou por terra
Cortesia de prof2000
O herói literário, o D. João romanesco, é porém só uma das faces literárias do romantismo; a outra deita raízes pelo século XVIII. Tem por um dos avós ao abade de Saint-Pierre, é boa metade de Rousseau, e dá o tom a Robespierre; tinham ambos nascido para abades, mas uma ironia da sorte fez, de um, filósofo, do outro, ditador.
O lado propriamente literário da revolução moral do nosso tempo, eis o que o artista da Morte de D. João sentiu e disse em versos memoráveis. A musa dos lakistas aparece-lhe e manda-lhe cantar coisas que vão já, com efeito, cantadas, choradas, grunhidas, e ditas afinal em todas as vozes de todos os animais bipedes que têm enchido as livrarias modernas, com os produtos do seu astro apaixonado ou sensível.
Cortesia de letrassuspeitas
Vai o poeta observando à musa os obstáculos que o seu coração de homem de bem, e a sua consciência de homem sensato, opõem a esse modo de pensar, e a musa respondendo, até que afinal, perdida a esperança, foge. À musa dos lamartinianos, entretanto, nunca em seus dias ousou empregar em serviço próprio a ironia, essa alegre companheira, e consoladora íntima de todos os bons espíritos. A ironia não se compadece, é verdade, com as regras literárias da contemplação do vazio, das lamentações ao luar, e dos cânticos de erotismo amoroso:
Se há estrelas no céu e rosas pelo monte,
Se sabes ler Petrarca e ler Anacreonte,
Se a tua amante é bela e se o teu sangue é novo,
Deixa espingardear o coração do povo,
Deixa morrer Catão, deixa insultar a luz,
Deixa queimar Voltaire, deixa matar Jesus...
Não cessam de cantar por isso as cotovias.
Que o Pontífice lamba os pés das monarquias,
Que Tartufo conspire e D. João seduza,
Que a treva inunde a escola e a honra empenhe a blusa,
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Que nos importa a nós? Que importa o bem e o mal,
As velhas dissensões, a luta, o dogma, a crítica?
Os rouxinóis não têm opinião política,
As flores não vão ler as obras de Proudhon...
In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, A Poesia Revolucionária e a Morte de D. João, Seara Nova 1948, Lisboa.
Cortesia de Seara Nova/JDACT