Memorial do Convento
«Entre as diferentes facetas que chamaram a atenção do público e da crítica para este romance, talvez possamos destacar algumas. Desde logo, a sua escrita não só confirmava o insólito «estilo saramaguiano» de transmitir a oralidade através de longos períodos sem nenhum ponto final, mas também articulava agora a linguagem popular com um barroquismo setecentista de elevada qualidade. Depois, o romance era uma inesperada versão ao revés da historiografia oficial dos poderosos, dos feitos militares e das relações político-diplomáticas, incorporando as lições da «nouuelle histoire» e tendo um laivo marxista nos seus anti-heróis do povo miúdo.
A par disso, a narrativa combinava a estória de figuras do povo anónimo com a história da construção do Convento de Mafra, que era assim despojado do seu carácter gélido de obra do regime absolutista para uma certa humanização que os amores, as dificuldades, as alegrias e as tristezas da «arraia-miúda» representada por tais figuras acabavam por trazer para essa edificação que chegou a exigir o trabalho de 50 000 pessoas, muitas delas forçadas pelo despotismo.
Cortesia de ube
As próprias personagens de Baltazar, o soldado maneta, de Blimunda, a filha-prodígio de uma condenada pela Inquisição que se une a Baltazar e tem o poder misterioso de ver através do interior do corpo humano e de Bartolomeu de Gusmão (esta era uma figura histórica que foi um padre heterodoxo e um inventor, estando no romance associado à construção da maquineta voadora da «passarola» e ao aliciamento do casal para a sua arriscada empresa de dar vida a este invento) eram autênticos achados artísticos, tanto assim era que, em certas traduções, o livro se intitulará mesmo «Baltasar and Blimunda» ou «Histoien om Baltasar og Blimunda og den forunderlige Passarola».
Por fim, e quando o «boom» da ficção latino-americana dos Garcia Marquez ou dos Juan Rulfo ainda não se esgotara nos meios literários internacionais, o romance incorporava uma inegável dose de realismo mágico que o aparentava a estes autores, levando assim o cruzamento de aspectos como o engenho voador da «passarola» e as capacidades paranormais de Blimunda com vertentes vincadamente realistas como o duro mundo quotidiano da enorme massa de trabalhadores braçais e artesãos empregue na feitura do convento a maravilhar boa parte dos leitores dessa importante corrente literária que se havia imposto nos mercados culturais dos países desenvolvidos desde a década de 60.
Com a notável excepção da recensão que Álvaro Pina então lhe dedicou nas páginas da revista «Colóquio-Letras», onde escreveu que:
- Surpreendente, não menos do que o inêxito artístico e estético do livro, foi o coro entusiástico de vozes que o louvaram como um grande romance. [...] Penso, no entanto, que qualquer leitura inteligente de «Memorial do Convento» nos faz perceber que o livro por mais interessante que o possamos achar, não chega a ser um romance, será quanto muito um tratamento superficialmente romanceado de materiais históricos. Não fora isso, seria quase um caso de pedir desculpa por se discordar…» (Colóquio-Letras, Novembro de 1983), a crítica literária foi ainda mais veemente em louvores do que no caso de «Levantado do Chão».
Baptista Bastos, que não gostara de «Levantado do Chão», é agora encomiástico:
- «Memorial do Convento é um inusitado achado, um formidável edifício verbal, uma tarefa realizada com humildade e escrúpulo, uma visão prometeica e trágica, uma relação inolvidável entre o homem e a História. E, sobretudo, um acto demiúrgico» (Diário Popular, 7/2/1983).
Nas páginas de O Diário de 6 de Março de 1983, Luís Francisco Rebelo invoca a leitura da obra sob o «império da fascinação», o «estilo incomparável de Saramago» e chama-lhe o mais antigo e o mais moderno dos romances portugueses». No Jornal de Letras, Artes e Ideias de 15 de Fevereiro de 1983, Urbano Tavares Rodrigues classifica-o como «obra de fábrica original e impecável». In Biografia José Saramago, João Marques Lopes, Guerra e Paz Editores, ISBN 978-989-8174-52-9.
Cortesia de Edições Pluma/JDACT