Cortesia de wikipedia
«Corresponderá acaso à verdade social e moral o quadro de costumes, ou antes de vícios, de que a «Morte de D. João» nos desenrola o longo inventário? Não me parece; e já disse a razão, que reputo verdadeira, dessa inundação de coisas feias com que o poeta julgou que se desenha o retrato das classes ainda mais imorais e corrompidas da nossa sociedade. É uma questão de literatura:
- O realismo faz-se assim.
Mas será somente isto? O pensamento, que foi ligando essa cadeia de fúnebres e asquerosos esboços, não vai além de um mero sistema de escola? Não o creio tão pouco.
Há infelizmente um modo de olhar as coisas da sociedade, que é o maior obstáculo à rápida conciliação dos interesses e das tradições. Ao encarar os enovelados rolos da sombra densa, por entre a qual entrevemos o agitar aparentemente confuso das ideias, das classes e das pessoas, o primeiro movimento espontâneo do espírito é abraçar-se a uma ideia, a uma classe, e quantos, mal de nós, a um nome, endeusá-lo, e fulminar tudo quanto de perto ou de longe, mais ou menos completamente, parece opor-se-lhe.
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Esse antigo espírito de crítica subjectiva, fonte primordial de todas as intolerâncias, não está por nosso mal apagado, apesar de Kant, apesar de Hegel, apesar dos exemplos de todos os dias, de todas as coisas, que nos vão mostrando a razão necessária de tudo quanto existe, e a insensatez das nossas decisões, quando queremos condenar com elas uma linha só do que está escrito no livro dos destinos.
Não há no mundo escolhidos nem réprobos, há homens. E a verdadeira e exclusiva missão do homem é compreender-se a si mesmo e ao mundo onde existe; porque é da compreensão das coisas que saiem as grandes linhas do «edifício ideal», nosso critério supremo e exclusivo.
As leis do Universo são fatais e inacessíveis à liberdade; o ponto mais elevado da acção do homem é mover-se dentro da fatalidade, de acordo com ela, consciente de quem e como é, e como que obrigando-a assim a patentear as suas feições misteriosas.
A fatalidade universal tem para nós uma história que se divide em dois grandes ciclos:
- O inconsciente e o consciente.
- O primeiro caracteriza-se pela luta,
- o segundo pela concórdia.
No primeiro, os homens, às cegas, encontram em tudo matéria para ardentes decisões, violentos combates, reptos insensatos do que julgam as ordens do seu espírito livre; no segundo, «riffletono con mente pura», como diz Vico, e percebem a necessidade das coisas, e o lugar adequado a cada uma delas, na série ininterrupta da História.
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Definir esta necessidade como somente histórica, conceber a sua relação com o tempo, classificá-la cronologicamente, eis o que manda a verdadeira compreensão das leis da Natureza que são as do Espírito, e o mais fundo alicerce do «Ideal». Deixai aos que não podem ou não sabem amá-lo a adoração estúpida de uma fatalidade inconsciente, a concepção como necessidade lógica, e da Humanidade e da História como rolos de areia que o mar revolto lança, conforme o vento impele as ondas, à toa, para qualquer dos pontos do quadrante...
Não há no mundo escolhidos, nem réprobos, há homens; actores a quem a sorte distribuiu os diferentes papeis da tragédia. Que façam uns de tiranos, outros de vítimas, uns de demónios e outros de anjos, merecem acaso por isso pena ou prémio?
Eles são todos conforme os fizeram as coisas:
- são meros produtos, não são causas.
Que o véu das misérias humanas nos chame a tristeza ao pensamento, nada mais natural para quem espere num futuro de maior juízo; mas que vamos nós lançar gritos e gestos na grande caldeira onde fervem os gestos e os gritos de todos os que nem sabem para que têm mãos ou boca!...
Para bem ver as coisas, é mister conservar-se fora delas:
- para poder saber-se alguma coisa da sociedade, é mister viver no isolamento.
No dia em que puderem ver o seu semelhante com olhos de crítico, esquecendo-se de que são homens, nesse dia morreram todas as antigas dissenções, apagaram-se todos os velhos ódios». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, A Poesia Revolucionária e a Morte de D. João, Seara Nova 1948, Lisboa.
Cortesia de Seara Nova/JDACT