sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Ensaio sobre a Lucidez. José Saramago. «É quase meio-dia. Resoluto, aquele a quem temos dado o nome de vogal da porta levantou-se, Se o senhor presidente me dá licença, agora que não temos ninguém a votar, vou ver como está o tempo»

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«(…) O que disseram os membros da mesa e os delegados dos partidos, tirando o do p.d.e., que, falto de informações próprias, estava ali para ouvir, foi, ou que aos familiares não lhes apetecia nada apanhar uma molha e esperavam que o céu se resolvesse a escampar para animar a votação popular, ou então, como a mulher do secretário, pensavam vir votar durante o período da tarde. O vogal da porta era o único que se mostrava contente, via-se-lhe na cara a expressão complacente de quem tem motivos para orgulhar-se dos seus méritos, o que, ao ter de traduzir-se em palavras, veio a dar nisto, Da minha casa ninguém respondeu, só pode querer dizer que já vêm aí a caminho. O presidente foi sentar-se no seu lugar e a espera recomeçou. Foi quase uma hora depois que entrou o primeiro eleitor. Contra a expectativa geral e desalento do vogal da porta, era um desconhecido. Deixou o guarda-chuva a escorrer à entrada da sala e, coberto por uma capa de plástico rebrilhante de água, calçando botas também de plástico, avançou para a mesa. O presidente levantara-se com um sorriso nos lábios, este eleitor, homem de idade avançada, mas ainda robusto, vinha anunciar o regresso à normalidade, à habitual fila de cumpridores cidadãos avançando lentamente, sem impaciência, conscientes, como havia dito o delegado do p.d.d., da transcendente importância destas eleições municipais. O homem entregou o bilhete de identidade e o cartão de eleitor ao presidente, este anunciou com voz vibrante, quase feliz, o número do cartão e o nome do seu possuidor, os vogais encarregados da descarga folhearam os cadernos de recenseamento, repetiram, quando os encontraram, nome e número, marcaram o sinal de visto, depois, sempre pingando água, o homem dirigiu-se à câmara de voto com o boletim, daí a pouco voltou com o papel dobrado em quatro, entregou-o ao presidente, que o introduziu com ar solene na uma, recebeu os documentos e retirou-se, levando o guarda-chuva. O segundo eleitor tardou dez minutos a aparecer, mas, a partir dele, se bem que a conta-gotas, sem entusiasmo, como folhas outonais desprendendo-se lentamente dos ramos, os boletins de voto foram caindo na urna. Por mais que o presidente e os vogais retardassem as operações de escrutínio, a fila não chegava a formar-se, havia, quando muito, três ou quatro pessoas a esperar a sua vez, e de três ou quatro pessoas nunca se fará, por muito que elas se esforcem, uma fila digna desse nome. Razão tinha eu, observou o delegado do p.d.m., a abstenção será terrível, maciça, depois disto ninguém se vai entender, a única solução está na repetição das eleições, Pode ser que o temporal remita, disse o presidente, e, olhando o relógio, murmurou como se rezasse, É quase meio-dia. Resoluto, aquele a quem temos dado o nome de vogal da porta levantou-se, Se o senhor presidente me dá licença, agora que não temos ninguém a votar, vou ver como está o tempo. Não tardou mais que um instante, foi no pé esquerdo e voltou no pé direito, novamente feliz, anunciando a boa notícia, Chove muito menos, quase nada, e já começam a ver-se claros no céu. Pouco faltou para que os membros da mesa e os delegados dos partidos se juntassem num abraço, mas a alegria foi de curta duração. O monótono gotejo de eleitores não se alterou, vinha um, vinha outro, vieram a esposa, a mãe e uma tia do vogal da porta, veio o irmão mais velho do delegado do p.d.d., veio a sogra do presidente, a qual, faltando ao respeito que se deve a um acto eleitoral, informou o abatido genro de que a filha só apareceria lá para o fim da tarde, Disse que estava a pensar em ir ao cinema, acrescentou cruelmente, vieram os pais do presidente suplente, vieram outros que não pertenciam a estas famílias, entravam indiferentes, saíam indiferentes, o ambiente só se animou um pouco quando apareceram dois políticos do p.d.d., e, minutos depois, um do p.d.m., como por encanto uma câmara de televisão saída do nada tomou imagens e voltou para o nada, um jornalista pediu licença para uma pergunta, Como está a decorrer a votação, e o presidente respondeu, Podia estar melhor, mas, agora que o tempo parece ter começado a mudar, estamos certos de que a afluência de eleitores aumentará, A impressão que temos recolhido em outras assembleias eleitorais da cidade é de que a abstenção vai ser muito alta desta vez, observou o jornalista, Prefiro ver as coisas com optimismo, ter uma visão positiva da influência da meteorologia no funcionamento dos mecanismos eleitorais, bastará que não chova durante a tarde para que consigamos recuperar o que o temporal desta manhã tentou roubar-nos. O jornalista saiu satisfeito, a frase era bonita, poderia dar, pelo menos, um subtítulo de reportagem. E, porque havia chegado a hora de dar satisfação ao estômago, os membros da mesa e os delegados dos partidos organizaram-se por turnos para, com um olho posto nos cadernos de recenseamento e outro na sanduíche, comerem ali mesmo.

Havia deixado de chover, mas nada fazia prever que as cívicas esperanças do presidente viessem a ser satisfatoriamente coroadas pelo conteúdo de uma urna em que os votos, até agora, mal chegavam para lhe atapetar o fundo. Todos os presentes pensavam o mesmo, a eleição já era um tremendo fracasso político. O tempo passava. Três horas e meia da tarde tinham soado no relógio da torre quando a esposa do secretário entrou para votar. Marido e mulher sorriram um ao outro com discrição, mas também com um toque subtil de indefiníveis cumplicidades, um sorriso que causou ao presidente da mesa uma incómoda crispação interior, talvez a dor da inveja por saber que nunca viria a ser parte num sorriso como aquele. Ainda continuava a doer-lhe numa prega qualquer da carne, num recesso qualquer do espírito, quando, trinta minutos depois, olhando o relógio, perguntava a si mesmo se a mulher sempre teria ido ao cinema. Vai-me aparecer aqui, se é que aparece, à última hora, no último minuto, pensou. As maneiras de conjurar o destino são muitas e quase todas vãs, e esta, ter-se obrigado a pensar o pior confiando que viesse a suceder o melhor, sendo das mais vulgares, poderia ser uma tentativa merecedora de consideração, mas não irá dar resultado no caso presente porque de fonte digna de todo o crédito sabemos que a mulher do presidente da mesa foi de facto ao cinema e que, pelo menos até este momento, ainda não decidiu se virá votar. Felizmente, haja outras vezes invocada necessidade de equilíbrio que tem segurado o universo nos seus carris e os planetas nas suas trajectórias determina que sempre que se tire algo de um lado se ponha no outro algo que mais ou menos lhe corresponda, da mesma qualidade e na mesma proporção podendo ser, a fim de que não se acumulem as queixas por diferenças de tratamento. De outro modo não se compreenderia porque motivo, às quatro horas da tarde, precisamente a uma hora que não é tarde nem cedo, que não é carne nem peixe, os eleitores que até então se tinham deixado ficar na tranquilidade dos seus lares, parecendo ignorar abertamente o acto eleitoral, começaram a sair para a rua, a maioria pelos seus próprios meios, mas outros graças à benemérita ajuda de bombeiros e de voluntários porque os lugares onde moravam ainda se encontravam alagados e intransitáveis, e todos, todos, os sãos e os enfermos, aqueles por seu pé, estes em cadeiras de rodas, em macas, em ambulâncias, confluíam para as suas respectivas assembleias eleitorais como rios que não conhecem outro caminho que não seja o do mar. Às pessoas cépticas, ou apenas desconfiadas, essas que só estão dispostas a acreditar nos prodígios de que esperam extrair algum proveito, haverá de parecer que a acima mencionada necessidade de equilíbrio está a ser descaradamente falseada na presente circunstância, que aquela artificiosa dúvida sobre se a mulher do presidente da mesa virá ou não votar é, a todos os títulos, demasiado insignificante do ponto de vista cósmico para que seja preciso compensá-la, numa cidade entre tantas do mundo terreno, com a movimentação inesperada de milhares e milhares de pessoas de todas as idades e condições sociais que, sem se terem posto previamente de acordo sobre as suas diferenças políticas e ideológicas, decidiram, enfim, sair de casa para irem votar». In José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-211-608-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT

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