A história de um assassino
«Esta estranha história passa-se no século XVIII e é fruto de
um extraordinário trabalho de reconstituição histórica que consegue captar
plenamente os ambientes da época tal como as mentalidades. O protagonista é um
artesão especializado no ofício de perfumista, e essa arte constitui para ele,
nascido no meio dos nauseabundos odores de um mercado de rua, uma alquímica
busca do Absoluto. O perfume supremo será para ele uma forma de alcançar o Belo
e, nessa demanda nada o detém, nem mesmo os crimes mais hediondos, que fazem
dele um ser monstruoso aos nossos olhos. Jean-Baptiste Grenouille possui no
entanto uma incorrupta pureza que exerce um forte fascínio sobre o leitor. O
Perfume, publicado em 1985, de um autor então quase desconhecido, foi
considerado um dos mais importantes romances da década e nunca mais deixou de
ser reeditado desde então, totalizando os 4 milhões de exemplares vendi dos, só
na Alemanha, e 15 milhões em países estrangeiros. Foi traduzido em 42 línguas.
Este fenómeno transformou-o num dos mais importantes livros de culto de sempre».
In Sinopse
«No século XVIII viveu em França um homem que se inseriu entre as personagens mais geniais e mais abomináveis desta época que, porém, não escasseou em personagens geniais e abomináveis. É a sua história que será contada nestas páginas. Chamava-se Jean-Baptiste Grenouille e se o seu nome, contrariamente aos de outros grandes facínoras de génio, como, por exemplo, Sade, Saint-Juste, Fouché, Bonaparte, etc., caiu hoje em dia no esquecimento, tal não se deve por certo a que Grenouille fosse menos arrogante, menos inimigo da Humanidade, menos imoral, em resumo, menos perverso do que os patifes mais famosos, mas ao facto de o seu génio e a sua única ambição se cingirem a um domínio que não deixa traços na História: ao reino fugaz dos odores. Na época a que nos referimos dominava nas cidades um fedor dificilmente imaginável para o homem dos tempos modernos. As ruas fediam a lixo, os saguões fediam a urina, as escadas das casas fediam a madeira bolorenta e a caganitas de rato e as cozinhas a couve podre e a gordura de carneiro; as divisões mal arejadas fediam a mofo, os quartos de dormir fediam a reposteiros gordurosos, a colchas bafientas e ao cheiro acre dos bacios. As chaminés cuspiam fedor a enxofre, as fábricas de curtumes cuspiam o fedor dos seus banhos corrosivos e os matadouros o fedor a sangue coalhado. As pessoas fediam a suor e a roupa por lavar; as bocas fediam a dentes podres, os estômagos fediam a cebola e os corpos, ao perderem a juventude, fediam a queijo rançoso, leite azedo e tumores em evolução. Os rios fediam, as praças fediam, as igrejas fediam e o mesmo acontecia debaixo das pontes e nos palácios. O camponês cheirava tão mal como o padre, o operário como a mulher do mestre artesão, a nobreza fedia em todas as suas camadas, o próprio rei cheirava tão mal como um animal selvagem e a rainha como uma cabra velha, quer de Verão quer de Inverno. Isto porque neste século XVIII a actividade destrutiva das bactérias ainda não encontrara fronteiras e não existia, assim, qualquer actividade humana, quer fosse construtiva ou destrutiva, qualquer manifestação da vida em germe ou em declínio, que estivesse isenta da companhia do fedor. E era, naturalmente, em Paris, que o fedor atingia o índice mais elevado, na medida em que Paris era a maior cidade da França. E no seio da capital existia um lugar onde o fedor reinava de uma forma particularmente infernal, entre a Rua aux Fers e a Rua de la Ferronerie, na realidade, o Cemitério dos Inocentes. Durante oitocentos anos, tinham-se transportado para lá os mortos do Hotel Dieu e os das paróquias vizinhas; durante oitocentos anos havia-se trazido até ali, dia após dia, em carroças, os cadáveres que eram atirados às dúzias para fundas valas; durante oitocentos anos, havia-se acumulado camadas sucessivas de ossos nas carneiras e ossuários. E foi só mais tarde, em vésperas da Revolução Francesa, quando algumas destas valas comuns se abateram perigosamente e o fedor deste cemitério a abarrotar desencadeou entre os habitantes das margens do rio não apenas protestos mas verdadeiros motins, que acabaram por encerrá-lo e esvaziá-lo, tendo sido os milhões de ossos e crânios empurrados à pá na direcção das catacumbas de Montmartre e construído um mercado, em sua substituição, neste local. Aqui, no sítio mais fedorento de todo o reino, nasceu Jean-Baptiste Grenouille, a 17 de Julho de 1738. Foi um dos dias mais quentes do ano. O calor pesava como chumbo sobre o cemitério, projectando nas ruelas vizinhas o seu bafo pestilento, onde se misturava o cheiro a melões apodrecidos e a trigo queimado. Quando começou com as dores de parto, a mãe de Grenouille encontrava-se de pé, atrás de uma banca, na Rua aux Fers, a escamar as carpas que acabava de estripar. Os peixes, supostamente pescados no Sena nessa mesma manhã, já cheiravam pior do que um cadáver. A mãe de Grenouille não distinguia, no entanto, entre o cheiro a peixe e o de um cadáver, na medida em que o seu olfacto era extraordinariamente insensível aos cheiros, e, além disso, a dor que lhe apunhalava o ventre eliminava toda a sensibilidade às sensações exteriores. Apenas desejava que a dor parasse; desejava pôr termo o mais rapidamente possível a este repugnante parto. Era o seu quinto. Todos os outros se haviam verificado atrás desta banca de peixe e sempre se tratara de nados-mortos, ou quase, porque a carne sanguinolenta que dela se escapava não se diferençava grandemente das miudezas de peixe que juncavam o solo, e também não possuía, além disso, muito tempo de vida; à noite, tudo era varrido a trouxe-mouxe e levado nas carroças, em direcção ao cemitério ou ao rio. Era o que deveria passar-se, uma vez mais, naquele dia e a mãe de Grenouille, que ainda era jovem, vinte e cinco anos feitos, que ainda era bonita, que conservava quase todos os dentes e tinha ainda cabelos e que, independentemente da gota, da sífilis, e de uma leve tuberculose não sofria de qualquer doença grave, que esperava viver ainda muito tempo, talvez cinco ou dez anos, e talvez até mesmo casar um dia e ter verdadeiros filhos na qualidade de respeitável esposa de um artesão viúvo (por exemplo)..., a mãe de Grenouille desejava que tudo já tivesse acabado. E quando as dores de parto se fixaram, agachou-se, deu à luz debaixo da sua banca de peixe tal como das vezes anteriores e cortou com a faca de peixe o cordão umbilical do recém-nascido. Em seguida, porém, e devido ao calor e ao mau cheiro que ela não apercebia como tal mas como algo de insuportável e estonteante, um campo de lírios ou uma divisão demasiado pequena a transbordar de junquilhos, desmaiou e caiu para o lado e rolou debaixo da banca até ao meio da rua, onde ficou estiraçada com a faca na mão. Gritos, correrias, a multidão de basbaques à roda e alguém que vai chamar a Polícia». In Patrick Suskind, O Perfume, A história de um assassino, 1985/1986, Editorial Presença, 2013, ISBN-978-972-231-448-0.
Cortesia de EPresença/JDACT
JDACT, Patrick Suskind, Mistério, Crime,