Problemas e Conceitos
«(…) Enfim, a expressão desta emoção faz claramente parte da discursividade
política. É mesmo considerada a emoção régia por excelência, da mesma forma que
divina, e surge em consequência de um qualquer acto que desafia a potestas. No final da Idade
Média, a ira encontra inclusivamente diversos graus de expressão consoante o
que a expressa. Em sentido estrito, responde a uma ofensa, uma desvalorização,
em público e injusta, relacionando-se de forma próxima com a honra. Importa, no
entanto, sempre, medir a sua expressão, que não seja exagerada. A ira, por sua
vez, inspira medo. Mas medo, temor e receio são três palavras que designam
variações do mesmo tema, ou assim parecem, e articulam-se estreitamente com a
legitimidade do governo. De facto, parece certo na historiografia que faz parte
do governo (rulership) a
necessidade de se fazer respeitar e amedrontar (to be feared), incutindo terror no que lhe está subordinado. A ira régia, de
que falávamos acima, tem precisamente essa como uma das suas funções.
O medo e a sua relação com a figura régia na Castela do século XIV foi já
alvo de estudo e dele partiremos para tentar aduzir algumas ideias que nos
podem ser úteis. As Partidas
de Alfonso X surgem-nos como ponto de partida. É aí que se encontra a noção
fundamental da diferença entre temor e medo. O temor tem a raiz no amor:
teme-se, portanto, a quem se deve amar, Deus e o soberano. O medo como tal
radica no espanto. E aqui encontramos problemáticas delicadas de tradução e
interpretação tanto da bibliografia como das fontes. O medo, com raiz latina em
metus e de que
deriva o verbo amedrontar, e o temor, com origem em timor e de que deriva o verbo temer, são coisas muito
diferentes, embora tendamos a usá-las quase da mesma forma. Por vezes, o medo
está relacionado com a protecção da integridade física e da honra daquele que o
sofre. Nas crónicas castelhanas, o medo parece funcionar como meio de legitimar
e encenar rupturas para depois restabelecer a normalidade a partir de fora,
variando na prática com o momento político. É o mesmo artigo de François
Foronda que nos chama a atenção para a polarização clássica do poder régio
medieval: o polo positivo como rei/amor/temor e o polo negativo
tirano/espanto/medo. O uso de qualquer um destes termos pelo cronista Fernão
Lopes é delicado: muitas vezes misturam-se e sobrepõem-se. Para complicar, a
língua portuguesa junta um terceiro termo a estes dois polos: o receio, que se
parece com uma variante mais suave do medo.
A estes dados, podemos ainda juntar um outro: e como é que as mulheres e os
homens se distinguem neste campo? Havia uma diferença na percepção e na
expressão de emoções entre os dois géneros? A resposta curta é: sim. Quando há
mulheres em patamares de poder, estas têm à disposição o mesmo tipo de
instrumento de comunicação que qualquer homem. No entanto, parece que a
cronística tende a mostrar desagrado quando isso acontece, preferindo
reservar-lhes os papéis ditos tradicionais. Em si mesmas, no entanto, as
emoções políticas não têm género, mesmo que as mulheres da aristocracia tenham
acesso a uma paleta de emoções muito mais restrita. O facto é curioso, tendo em
conta que a sociedade medieval faz, das mulheres, seres mais emotivos por
natureza.
A sanha, o amor e o desequilíbrio: Leonor e Fernando
Por tudo o que expusemos, é lógico que a ira seja uma das
emoções mais amplamente expressas na generalidade. A surpresa surge quando,
analisando a Crónica de D. João I,
é a rainha Leonor Teles que domina as referências à sanha em toda a Primeira Parte,
quer seja porque a emoção é sentida e expressa por ela, quer esteja apenas no
seu entorno directo. Sofre-a e a ela ninguém podia fazer nojo, porque sofreria
rapidamente a sua sanha. Esta consideração de Fernão Lopes obriga-nos a retomar
a necessidade de a ira régia ser moderada. O desregramento que aponta a Leonor
Teles é mais um factor que contribui para justificar a sua queda. Notemos que
Fernão Lopes equipara, na primeira ocasião que citámos, o ódio que pede
vingança ao amor que não descansa enquanto não alcança quem quer. Em ambos a
rainha se viu ou vê enredada. A ira implica, directamente, a emoção seguinte
que aqui abordamos na relação com Leonor Teles: o medo». In Inês Olaia, O rei que esmorece
e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas
crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº 27, Janeiro-Junho 2020, ISSN
1646-740X.
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA27/olaia2701.html,
Cortesia de RMedievalista/JDACT
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