Problemas e Conceitos
«(…) É igualmente no espaço emocional que se jogam as relações entre o
vício e a virtude, e o modelo do rei deve ser exemplar nesse âmbito, em
simultâneo um homem comum e extraordinário. O ponto essencial é sempre o do
equilíbrio. Se a emoção do príncipe for orientada para a virtude, então a
decisão consequente será positiva. Caso contrário, o resultado pode ser
catastrófico. As emoções são a expressão tangível da persuasão e da acção
política, interfaces entre a acção verbal, a acção corporal e a passagem ao acto.
Veículo de comunicação, entre pessoas de poder, elas marcam as descontinuidades
e os eventos políticos; a emoção principesca revela a iminência de um
determinado acto.
A nossa análise revelará que, entre os mecanismos que justificam a
transição para uma nova dinastia, nas crónicas de Fernão Lopes, contam-se as
emoções como a sanha e o medo. O problema da ira régia exige, no entanto, um
aprofundamento um pouco diferente. Foi alvo de um número mais amplo de estudos
e a sua evolução deu origem inclusive a visões que parecem colidir. O monarca
pode expressar a sua mercê e a sua graça através de uma multiplicidade de
meios; a ira encontra os mesmos canais ou similares e faz parte da prática de
governo (enquanto rulership, definido por Gerd Althoff nos termos de mecanismo
pessoal de regulação, baseado num conjunto de leis não escritas). A ira também
faz, no entanto, parte dos catálogos de pecados medievais, sendo mesmo um
pecado mortal. A sua expressão está intrinsecamente ligada ao exercício do
poder, porquanto este precisa do terror,
do medo, para ser efectivo. Os usos da ira régia mostram, ainda para Althoff,
como o ideal cristão de governante coincide ou não com a prática de governo. A
paciência, a moderação e a capacidade de perdoar são definidas nos finais da
Idade Média como características da própria natureza régia. A ira fornecerá,
por fim, um meio de caracterizar monarcas injustos, funcionando como
demonstrador da sua incapacidade para governar. Pode ainda ser diametralmente
oposta à justiça, o que agrava a caracterização do monarca em causa. Com o
correr dos séculos, a ira ganha uma outra conotação, cada vez mais frequente: a
ira justa, ou seja, aplicar a ira para alcançar a justiça. A aplicação é
possível porque a própria justiça se sobrepõe, em determinados contextos, à
clemência. A mudança de paradigma consagra que, no final da Idade Média, a ira
régia seja um tópico cada vez mais complexo, porque depende essencialmente do
contexto em que é aplicada.
Por sua vez, para Stephen D. White, a ira, nas crónicas, tanto pode ser expressa verbalmente como indicada ou explicitamente mostrada através de acções físicas. É igualmente expressa de forma clara, pública e ritual, codificada para ser compreendida por todos os que a ela assistem. Não se trata, quando lidamos com estas emoções, de uma emoção expressa na intimidade ou vivida com o indivíduo, essa concepção seria um anacronismo. A expressão pública da ira é, normalmente, masculina e feita por aqueles que têm estatuto para tal: reis, nobres… Faz, da mesma forma, parte da acção política e tanto pode ser sua percursora quanto sua consequência; funciona como reconhecimento legal de determinada acção como reprovável ou injuriosa e aponta os seus autores. Da mesma maneira, a forma como a ira é atenuada tem uma conotação similar». In Inês Olaia, O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº 27, http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA27/olaia2701.html, Janeiro-Junho 2020, ISSN 1646-740X.
Cortesia de RMedievalista/JDACT
Inês Olaia, História, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Literatura,