Porque mataremos e seremos mortos no século XXI
«(…) Na verdade, foram os Hereros
que iniciaram a guerra contra a administração colonial alemã, durante a noite
de 11 para 12 de Janeiro de 1904, começando por destruir uma linha de caminho-de-ferro
e derrubar grande quantidade de postes telegráficos e continuando pelo massacre
de surpresa de 123 trabalhadores alemães ainda adormecidos nas fazendas. Após
algumas tentativas inúteis de apaziguamento da luta, o governo real de Berlim
enviou o general-de-divisão Lothar von Trotha para comandar as tropas coloniais
alemãs. Von Trotha adoptou desde o início o conceito de uma guerra de extermínio,
de acordo com o qual ele não procurou simplesmente vencer os Hereros por meios
militares, mas os impeliu para o extermínio no deserto de Omaheke, onde ocupou
todas as nascentes de água, provocando pura e simplesmente a morte de seus adversários pela sede. Esta estratégia foi tão bem-sucedida quanto fora cruel; foi
relatado que os sedentos cortavam as gargantas de seus animais para beber-lhes o
sangue e que finalmente esmagavam osseus intestinos para deles retirar os últimos
restos de humidade. Não obstante, acabaram morrendo. Mas a guerra
prosseguiu, mesmo depois de os Hereros terem sido aniquilados; determinou-se
que os Namas, uma outra etnia, deveriam ser desarmados e subjugados enquanto as
tropas alemãs ainda se encontrassem no território. Diferentemente dos Hereros,
os Namas não ofereceram combate aberto, mas se limitaram a um combate de
guerrilhas, que se tornou um grave problema para as tropas coloniais, que adoptaram,
por sua vez, uma estratégia diferente, a qual logo seria imitada com frequência
ao longo do mortífero século XX: para retirar dos guerreiros os recursos sobre os
quais se apoiavam, os alemães assassinaram as mulheres e filhos dos Namas ou os
encerraram em campos de concentração.
A violência foi
realizada sob a pressão das circunstâncias e produziu as suas consequências.
Estas permaneceram, originaram novos meios de aplicação da violência, que se
foram tornando tanto mais amplos quanto mais eficientes se demonstravam. Isto
porque a violência é inovadora: ela gera novos meios e encontra novas proporções.
As tropas coloniais alemãs, não obstante, tiveram de combater os Namas durante
mais de três anos. Além disso, nem todos os campos de concentração permaneceram
sob controle do governo; também empresários privados, como a empresa de linhas
marítimas Woermann, estabeleceram os seus próprios campos de trabalhos forçados. Esta
guerra de extermínio não foi somente um exemplo da impiedade da violência colonial,
como um modelo para os genocídios futuros, por meio de seu propósito de total
eliminação, cumprido pelo internamento nos campos estabelecidos, que significavam
uma estratégia de extermínio por meio dos trabalhos forçados. Todos já ouvimos
contar a história das suas consequências; o Departamento I dos escritórios do Estado-Maior,
encarregado de redigir a história da guerra, escreveu orgulhosamente, em 1907,
que nenhum esforço, nenhuma privação foram poupados para que os inimigos fossem
privados dos últimos vestígios de sua capacidade de resistência, pois metade deles
foi morta nas regiões desérticas pela captura progressiva de todos os poços de água,
até que, finalmente, sem mais energia, eles fossem sacrificados pela natureza
da sua própria terra. O deserto sem água de Omaheke completou o que as armas alemãs
haviam iniciado: a aniquilação da tribo dos Hereros.
Isto se passou há cem anos; desde então, as formas de violência se
modificaram, nem tanto na sua forma e aspecto, mas na maneira segundo a qual são
referidas. O Ocidente não costuma mais, salvo em casos excepcionais, empregar
violência directa contra outros estados; as guerras são hoje empreendimentos
realizados por longas cadeias de acção e numerosos actores, por meio dos quais
a violência é delegada e se torna informe e invisível. As guerras do século
XXI são pós-heróicas e apresentadas como sendo conduzidas de má vontade pelas
nações que as empreendem. E no que se refere ao orgulho nacional por ter sido
alcançada a aniquilação de tribos selvagens..., isto é coisa que, desde o holocausto
dos judeus, se tornou impossível mencionar». In Harald Welzer, Guerras
Climáticas, Porque mataremos e seremos mortos no século XXI, LeLivros, Geração
Editorial, 2010, Wikipedia.
Cortesia de LLivros/GeraçãoE/JDACT
Harald Welzer, JDACT, Clima, Conhecimento,