Um jornalista levado dos diabos
«Vi que a vida era má e escrevi estas cartas.
Se as leres no meio de um festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a
sua consolação quando o mundo te fizer chorar».
Carta I
«(…)
A geração é de covardes e cada ano
que passa está mais corrupto o mundo. Ah, não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me
bate agora à porta, para que ele me chame o mais vil que o sol cobre, o mais
canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido! Ele não se engana. Lá tem o
seu raciocínio que não falha nunca. Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a
resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com
uma coronha e me há de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri.
Vai-se
embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola
e toda aquela que dá tudo o que tem. E cisma em ser um dia o maior dos Neros
que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa de uma só vez azorragar
a Terra, ele, cujo corpo deveria ser balançado no candeeiro ali defronte.
De
trinta mendigos a quem dei esmola hão-de nascer noventa patifes para me
apedrejar. Abençoada esmola! Mas explica-se. É que a minha esmola, esmola-humana,
fecunda lá dentro todo o meu cinismo e toda a minha canalhice. Deste-me esmola?
Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmola e porque me
curvei a ti. Toda a vida tu me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um
dia, eu mau como sou, estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar
de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves?
Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu
sentaste-me à tua mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio
tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu.
E
eu não podia vingar-me, mas agora chegou minha vez. Acredita que todos aqueles
a quem fazemos bem nutrem lá dentro a secreta esperança de um dia nos correrem
a pontapé. Logo no primeiro dia em que não temam desconjuntar a bota quando o
fizerem, percebes?
Escutaste?
Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto
e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. O pobre será odioso até ao seu parente mais chegado (Provérbios),
que não merece carinhos quem não tem para
caldo (Silva Pinto), ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e
cínico e traidor. A Vida? Seria
loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos quando vivemos
em semelhantes cavernas. A Vida é uma canalhice, uma farsa, uma luta brutal , como diz
Tourgueneff». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred
Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT
JDACT, Albino Forjaz Sampaio, Cartas, Crónicas, A Arte,