quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Inquisição. O Reinado do Medo. Toby Green. «Havia pinturas de meninos tocando trombetas acima da porta que levava ao cadafalso, e os prisioneiros seriam mantidos numa estrutura encimada por uma cúpula»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cidade do México, 1649

«Na segunda-feira 11 de Março de 1649 uma procissão partiu do quartel-general do Santo Ofício da Inquisição (maldita) na Cidade do México. A tropa de gala desfilou entre as casas caiadas, animada por músicos vestidos com sedas coloridas que tocavam trompetes, tímpanos e instrumentos de sopro. Os cavalos dos músicos eram seguidos pelos dos sacerdotes do Santo Ofício (maldito) e pelos dos mais nobres cavalheiros da cidade. Os religiosos portavam os brasões da Inquisição (maldita), que reflectiam justamente a luta entre a paz e a violência que estava no cerne daquela curiosa instituição: uma cruz no centro, um ramo de oliveira à direita e uma espada à esquerda. Ao final da procissão vinha dom Juan Aguirre de Soaznavar, o principal encarregado da Inquisição no México. O cortejo seguia pelas ruas de uma das duas mais importantes cidades da América, anunciando com o estrondo dos tímpanos e dos instrumentos de sopro que um grande auto de fé seria realizado num mês. Avisos haviam sido afixados nos edifícios do Santo Ofício, na casa do arcebispo, diante do palácio do vice-rei, no conselho da cidade e em várias ruas. Um mês era o tempo mínimo para preparar o grande teatro do auto de fé. Foi construído um cadafalso de cerca de 37 metros de comprimento por 24 metros de largura, em torno do qual foram erguidas oito colunas de mármore, agrupadas em pares. Na pedra angular de um arco acima do cadafalso havia um brasão com o escudo de armas real, e foi construída uma pirâmide decorada com um escudo da fé. Havia pinturas de meninos tocando trombetas acima da porta que levava ao cadafalso, e os prisioneiros seriam mantidos numa estrutura encimada por uma cúpula. A arena era sombreada por velas de barco fixadas em 43 troncos de aproximadamente 18 metros de altura, e trinta escadas levavam aos apartamentos e outros edifícios, permitindo que o público descansasse das exigências do auto de fé. O conjunto era esplendidamente decorado com pendentes de veludo, tapetes e cortinas vermelhas, e havia tanta actividade que as pessoas se congregavam todos os dias e ali permaneciam do alvorecer ao anoitecer [...] elas admiravam tudo e sentiam que estavam assistindo a algo que podia se perpetuar através dos tempos.

No dia 10 de Abril, após um mês de obras agitadas, mais de 20 mil pessoas lotaram a Cidade do México para assistir à procissão da cruz verde que anunciava o auto de fé do dia seguinte. As ruas entre os gabinetes da Inquisição (maldita) e a grande arena estavam cheias de palcos menores. As pessoas assistiam em bancos, coches, balcões e janelas quando dom Juan Aguirre Soaznavar surgiu, às três e meia da tarde, acompanhado de uma guarda de 12 homens, pajens e lacaios. Os sinos de todas as igrejas e mosteiros da cidade tocavam enquanto a procissão avançava. Os guardas estavam vestidos de verde e preto, as cores do império, com galões de ouro e prata. Quando a procissão finalmente chegou à Plaza del Volador, os soldados dispararam uma salva de tiros para celebrar, e vinte frades dominicanos caminharam segurando velas brancas para, finalmente, receber a cruz no cadafalso. Eram sete horas. A noite caíra sobre a cidade, mas havia tantas velas que faziam parecer que era dia em todo o teatro. As velas eram tão grossas que poderiam queimar durante dois dias. Foram entoadas orações no palco e uma multidão encheu a Plaza del Volador. Todos os assentos estavam ocupados. Poucos dormiam, imaginando as sentenças que seriam aplicadas aos condenados.

Contudo, enquanto na cidade proliferava todo tipo de rumores, o Santo Ofício (maldito) [...] prosseguia sua obra em silêncio. Dos gabinetes da Inquisição (maldita) foram enviados dois padres para ouvir as confissões de 15 pessoas condenadas à morte pela prática do judaísmo, apesar de terem sido baptizadas e declararem professar a fé católica. Eram os chamados relaxados, termo que designava aqueles que seriam entregues pela Inquisição às autoridades laicas para serem executados. Todos os relaxados alegaram inocência e afirmaram serem bons cristãos, menos um deles. A excepção era Tomás Treviño Sobremonte, um mercador itinerante que admitira ser judeu. Como se negara a aceitar a fé cristã, no dia seguinte seria executado na fogueira, enquanto os outros 14 relaxados obteriam a relativa clemência do estrangulamento antes de serem queimados.

Às quatro da manhã chegou o inquisidor-geral do México, Juan de Mañozca. Os sinos da catedral começaram a tocar para lembrar ao gentio que o auto de fé era uma representação terrena do Juízo Final. Além dos 15 relaxados, foram esculpidas efígies de 67 mortos para serem queimadas no lugar de seus corpos pelas heresias que eles não estavam mais vivos para expiar. As efígies vinham primeiro na procissão, seguidas por 23 caixas com as ossadas, que também eram queimadas. Então vinham os prisioneiros sentenciados a penitências, como o açoite, a prisão, as galés e o confisco dos bens, os reconciliados. Por último, os relaxados eram chamados para receber os estandartes de suas condenações, que eram sambenitos [o hábito penitencial dos prisioneiros] decorados com chamas e figuras de demónios; essas imagens aterrorizantes também decoravam as mitras, os capuzes em forma de cone que os prisioneiros usavam a caminho do cadafalso». In Toby Green, Inquisição, O Reinado do Medo, 2007, Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-853-900-354-9.

Cortesia de EObjectiva/JDACT

Toby Green, JDACT, Literatura, Religião,