sábado, 10 de outubro de 2020

José Saramago. Memorial do Convento. «Trazem agora umas figuras de barro pintadas, de maior tamanho que o natural de homens citando de braços levantados, e põem-nas no meio do terreiro, que número será este, pergunta quem nunca viu…»

 

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«(…) Entrou o primeiro touro, entrou o segundo, entrou o terceiro, vieram os dezoito toureiros de pé que o Senado contratou em Castela a peso de muito dinheiro, e os cavaleiros saíram à praça, espetaram as suas lanças, e os de pé cravaram dardos enfeitados de papéis recortados, e aquele cavaleiro a quem o touro desfeiteou, fazendo-lhe cair o manto, atira o cavalo contra o animal e fere-o à espada, que é o modo de vingar a honra manchada. E entram o quarto touro, o quinto, o sexto, entraram já dez, ou doze, ou quinze, ou vinte, é uma sangueira por todo o terreiro, as damas riem, dão gritinhos, batem palmas, são as janelas como ramos de flores, e os touros morrem uns após outros e são levados para fora numa carroça de rodas baixas puxada a seis cavalos, como só para gente real ou de grande título se usa, o que, se não prova a realeza e a dignidade dos touros, está mostrando quanto eles são pesados, digam-no os cavalos, aliás bonitos e luzidamente aparelhados, encapuzados de veludo carmesim lavrado, com as mantas franjadas de prata falsa, assim como as cabeçadas e cobertas de pescoço, e lá vai o touro crivado de flechas, esburacado de lançadas, arrastando pelo chão as tripas, os homens em delírio apalpam as mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce, nem Blimunda é excepção, e por que havia de o ser, toda apertada contra Baltasar, sobe-lhe à cabeça o sangue que vê derramar-se, as fontes abertas nos flancos dos touros, manando a morte viva que faz andar a cabeça à roda, mas a imagem que se fixa e arrefece os olhos é a cabeça descaída de um touro, a boca aberta, a língua grossa pendendo, que já não ceifará áspera, a erva dos campos, ou só os pastos de fumo do outro mundo dos touros, como haveremos de saber se inferno ou paraíso.

Paraíso será, se justiça houver, nem pode haver inferno depois do que sofrem estes, os das mantas de fogo que são umas capas grossas, em camadas, recheadas de várias ordens de foguetes, e pelas duas pontas delas se lhes chega o lume, e então começa a manta a arder, e os foguetes rebentam, por largo espaço vão rebentando, estouram e resplandecem por toda a praça, é como assar o touro em vida, e assim vai o animal correndo o terreiro, louco e furioso, saltando e bramindo, enquanto João V e o seu povo aplaudem a mísera morte, que nem o touro, ao menos, se pode defender e morrer matando. Cheira a carne queimada, mas é um cheiro que não ofende estes narizes, habituados que estão ao churrasco do auto-de-fé, e ainda assim vai o boi ao prato, sempre é um final proveito, que do judeu só ficam os bens que cá deixou.

Trazem agora umas figuras de barro pintadas, de maior tamanho que o natural de homens citando de braços levantados, e põem-nas no meio do terreiro, que número será este, pergunta quem nunca viu, talvez descansassem da carnificina os olhos, enfim, se as figuras são de barro, o pior que pode sair disto é um monte de cacos, que depois terão de varrer tudo, está a festa estragada, é o que é, dizem os cépticos e os violentos, venha outra manta de fogo para rirmos todos e el-rei, não são assim tantas as ocasiões em que podemos rir juntos, e neste instante saem do curro dois touros que, pasmados, dão com a praça deserta, só aqueles manipanços de braços alevantados e sem pernas, redondos de bojo e sarapintados como demónios, nestes vingaremos todas as ofensas sofridas, e os touros investem, rebentam-se os potes com surdo estrondo e de dentro saem dezenas de coelhos espavoridos, correndo à disparada por todos os lados, perseguidos e mortos a porrete pelos capinha e outros homens que saltaram à praça, um olho no bicho que foge, outro no bicho que marra, enquanto o povo ri em gargalhadas estentóreas, de gente excessiva, subitamente mudam os clamores de tom porque de dois outros bonecos de barro, agora despedaçados, saem estalando bruscamente as asas bandos de pombas, desorientadas pelo choque, feridas pela luz crua, algumas perdem o sentido do voo, não conseguem ganhar altura e vão esbarrar com os altos palanques onde caem em mãos sôfregas, não tanto por mira do salubre petisco que é o pombo estufado, mas para ler a quadra que vai escrita num papel atado ao pescoço da ave, como são estes exemplos, Eu tinha uma ruim prisão e que de boa escapei, mas aqui ditosa serei, se for dar em certa mão, Aqui me traz minha pena com bastante sobressalto, porque quem voa mais alto, a mais queda se condena, Ora já estou descansada, e se hei-de morrer enfim, Deus, que o determina assim, me mate com gente honrada, Eu venho fugindo aos tombos dos que por matar-me morrem, que aqui, quando touros correm, também querem correr pombos, porém nem todos, que alguns abrem voos circulares, escapam ao vórtice das mãos e dos gritos, e sobem, sobem, acertam o bater das asas, colhem nas alturas a luz do sol, e quando se afastam, por cima dos telhados, são como pássaros de ouro.

Na madrugada seguinte, ainda noite, Baltasar e Blimunda, sem outro carrego que uma trouxa de roupa e alguma comida no alforge, saíram de Lisboa para Mafra». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,