As Personagens Erradas
«(…) Calhou ter escolhido um
daqueles restaurantes de preços médios, à vista, mas que facilmente se tornam
ruinosos se caímos no engodo do tachinho de azeitonas ou do vinho de rótulo.
Pedi já nem sei quê, talvez uma dessas comidas que a memória da infância teima
em insinuar, como um tropismo, mas que são, invariavelmente, uma decepção
melancólica. Desforro-me no vinho gelado, que abranda e reconforta, luz
interior que percorre o corpo e deixa rastos cintilantes nas veias. Veio enfim
o café
É o melhor momento da refeição,
aquele em que se ergue a cabeça para olhar o que nos rodeia. Ali, era péssimo o
que havia para ver: uma decoração extravagante, carregada de luminárias
coloridas, de azulejos e mosaicos com motivos de tapeçaria rica, tectos
forrados de lâminas de cortiça, e, em alcandorados canteiros, plantas de plástico,
eternas, sem cheiro e abomináveis.
Pedi a conta, pedi rapidez, e
enquanto a máquina registadora me preparava o enigma das abreviaturas, cifras,
percentagens e somas fora do lugar, olhei para a minha esquerda, donde viera um
arrastar ostensivo de cadeiras. Sentavam-se três mulheres de meia-idade,
cinquenta-sessenta, uma delas imensa, transbordante, as outras baixinhas e
amarrotadas. Odiei-as logo, por instinto. E adivinhei quem eram, o que eram,
como eram. Eram as personagens erradas, aquelas que vivem por interposta imitação,
as alienadas por opção. Tinham ido ao restaurante só para mostrar que fumavam.
Fazendo maiúsculas com os gestos, tiraram das malas os maços e os isqueiros
(todas tinham isqueiro) e puxaram dos cigarros ao mesmo tempo, masculinamente,
sem inibições. Acenderam, lançaram grossas baforadas de fumo, pediram cafés,
bagaços, conversaram. Uma delas disse que fumava dois maços por dia, e a gorda,
com o ar de quem já por lá passou e agora se recata, foi de opinião que dois maços
eram de mais, ao que a outra respondeu que não podia evitar, não podia, eram os
nervos, sentia que estava viciada, paciência. Haviam aprendido a fumar
dolorosamente, em casa, às escondidas, com violentos ataques de tosse, arrancos
mortais, vómitos, náuseas, dores de cabeça, mas o sacrifício iria levá-las à
afirmação definitiva de si mesmas, ao pódio dos vencedores, à dignidade dos
homens. Agora vivem os dias à espera da hora da grande prova pública, ali no
restaurante, com cafés, bagaços e cigarros, falando alto para nada se perder do
exemplo. O empregado estende-me o pires com a conta hipocritamente dobrada. Porque
será que se dobram as contas? Por que será que falsificamos tudo? Há? Ah, as onomatopeias.
Pago e levanto-me, deixo umas moedas adicionais, também hipócritas, passo ao
lado das mulheres, três parcas maléficas, três vezes três vezes três, noves
fora, coisa nenhuma. Por que dobram as contas? Porque dobram? Porque se dobram
as pessoas? Por que se dobram? Porquê?
Um Braço no Prato
Este outro restaurante, aonde vou
uma vez por outra, deve ser um dos lugares de Lisboa mais capazes de
proporcionar uma suculenta análise sociológica. Nunca lá tinha entrado sozinho,
mas desta vez aconteceu, de modo que a atenção doentiamente aguda que dou às
coisas, sem ter que ocupar-se demasiado no quadrado branco da mesa, pôde
circular como um filtro ao redor da sala, colhendo os exemplares mais
merecedores de ponderação». In José Saramago, A Bagagem do Viajante,
1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT
Crónica, Ensaio, JDACT, José Saramago, O Saber, Nobel,