segunda-feira, 19 de julho de 2021

Elena. Marina Carvalho. «… finalmente meus castanhos e finos cabelos decidiram dar-me uma trégua. Sorrio e deixo a sala sem cerimónia. Preciso desesperadamente ver minha mãe, sentir meus irmãos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Elena

«(…) Olho pela janela do carro. É impossível evitar as comparações: lado a lado com o povoado da Nigéria, Perla é a visão do paraíso na Terra. Quero dizer, ela sempre foi linda, charmosa, agradável. Mas, depois de passar seis meses num lugar que parece ter sido abandonado por Deus, a capital da Krósvia, minha cidade natal, meu lar, parece ser ainda mais incrível. Pena que meu poder de deslumbramento tenha minguado um pouco desde que conheci a outra face da realidade, chocante, miserável, terrível. A vida jamais será a mesma depois de morar por seis meses naquele povoado nigeriano. Viro-me para meu pai e sorrio. É bom estar em casa. Sabe que sua mãe vai exigir que se alimente como se o mundo estivesse prestes a acabar, não é?, comenta meu pai, em tom de brincadeira. Ele nunca resiste a uma piadinha. A mãe diz que o seu Alex é o rei das tiradas de efeito. Rio antes de responder, mas não tenho nenhuma chance, porque ele logo emenda: está muito magra. Dá até para enxergar os ossos da costela. Exagero dele. Sei que emagreci. Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para mim. Na verdade, estou até gostando. Pelo menos, meu quadril avantajado deu uma reduzida. Reviro os olhos e volto a observar a paisagem. Meu pai dirige pelas ruas de Perla em direcção ao Palácio Sorvinski. Nós temos a nossa casa. Fica na periferia da cidade. Foi construída quando eu ainda era pequena. Meu pai fez o projecto, claro, do jeito que minha mãe sonhava, ou seja, nada de ângulos rectos e de aparência clean. A nossa casa reproduz o estilo colonial das cidades históricas brasileiras, inspirada nas construções de Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. No entanto, assim que foi diagnosticada a gravidez de risco da mãe, meu avô, o todo-poderoso (e fofo) rei Andrej Markov, insistiu que ela e, consequentemente, todos nós, ficássemos no castelo, onde haveria alguém para cuidar dela 24 horas por dia. Claro que, primeiro, a princesa Ana bateu o pé. Mas acabou vencida por muitas vozes contrárias. Eu, da minha parte, se querem saber, estou achando óptimo. Adoro o palácio, a praia particular, os jardins, as pessoas, a comida de Karenina..., tudo!

Sigo devaneando sobre os bons tempos que passarei com minha família. Porém, minha euforia se desvanece um pouco ao me lembrar de que, como meu período como voluntária na Nigéria ainda não acabou, estou impossibilitada de voltar para a faculdade. Isso significa que logo, logo meu quadril retornará ao tamanho original. Ócio mais a comida de Karenina se encarregarão de cuidar dele. Ao avistar as torres do Palácio Sorvinski, uma emoção familiar invade meu corpo. Prepare-se. Estão esperando com as honras e pompas dispensadas à neta do rei, avisa o pai, com uma expressão divertida. Não me importo nem um pouco de ser paparicada. Então, animada, deixo meu pai envolver meus ombros com o braço e seguimos até a entrada do castelo, sentindo o estômago revirar por antecipação. Nada como a saudade para nos fazer reafirmar nossos sentimentos pelas pessoas que amamos. Mal me vejo dentro dos limites do palácio, e várias vozes e braços queridos me assaltam. Elena! Florzinha, que bom que chegou!, exclama Irina, como sempre no ápice da animação. Ela não é minha avó de verdade nem a considero assim, apesar de ser a esposa do meu avô Andrej e actual rainha da Krósvia. Irina é uma amiga das mais queridas, alguém com quem posso contar em todas as ocasiões, mesmo depois de ter-se tornado mãe e se envolvido com todos os problemas da função. E por falar em tio... Já pedi ao Petrov para deixar a lancha a postos. Vamos marcar amanhã? Quem disse isso foi Hugo, meu tio, filho de Andrej e irmão da minha mãe. Ele  tem 12 anos! Um pirralho, desses bem hiperactivos. Mas, mesmo assim, ele é um amor. Eu o adoro e a gente costumava ser bem inseparável tempos atrás. Quero dizer, ele não se desgrudava de mim, até que as minhas hormonas adolescentes e as obrigações da juventude alteraram a nossa rota.

Hugo, dê um tempo à Elena, certo? Irina dá uma sacudida no filho enquanto me enlaça num abraço de urso. Sou recebida por todos como se tivesse ficado seis anos, e não seis meses, fora de casa. Porém, dou falta, naquele meio, daquela que me fez voltar para casa prematuramente. Onde está a mãe?, indago; o olhar perscrutando tudo ao redor. Lá em cima. Meu pai aponta na direcção das escadas. Ela..., está se sentindo bem? Preocupo-me. Apenas um pouco enjoada, assegura Irina, enrolando meus cabelos com os dedos, gesto que ela faz desde que eu era uma menininha bastante cabeluda. Meu cabelo dava trabalho para todos, e eu teimava em deixá-la solta, mesmo com as ameaças de castigo feitas por minha mãe. Por outro lado, o pai achava minha cabeleira a coisa mais linda deste mundo. Devido ao formato dela em torno do meu rosto, costumava-me chamar carinhosamente de sol, slinko em krósvi. Ainda bem que cresci. Depois de uma adolescência pouco à vontade, finalmente meus castanhos e finos cabelos decidiram dar-me uma trégua. Sorrio e deixo a sala sem cerimónia. Preciso desesperadamente ver minha mãe, sentir meus irmãos». In Marina Carvalho, Elena, a filha da princesa, Galera Record, 2015, ISBN 978-850-110-492-2.

Cortesia de GaleriaR/JDACT

JDACT, Marina Carvalho, Literatura,