Sophia
«(…) Já nos vejo na tela:
Cornelis, em fundo negro, com o seu colarinho de renda branca, a barba
mexendo-se enquanto come; o arenque jazendo no meu prato, de pele rasgada e
brilhante deixando à mostra a carne; os lábios entreabertos do meu pão. Uvas
roliças e espessas à luz da vela; o castiçal de estanho derramando uma luz
opaca. Já nos vejo: sentados à mesa, imóveis, os nossos momentos fixados antes
de tudo mudar. Depois do jantar ele costuma ler-me a Bíblia: toda a criatura é como a erva e toda a sua glória
como a flor-dos-campos!; a erva seca e a flor murcha, quando o sopro do Senhor
passar sobre elas; verdadeiramente, o povo é idêntico à erva... Mas encontro-me já pendurada na
parede, observando-nos.
Maria
Maria, a criada, sonolenta de
amor, está ocupada a dar lustre a uma panela de cobre. Sente-se avassalada de
desejo, lânguida, como se se movesse em círculos debaixo de água. O seu rosto,
distorcido pelo reflexo do metal, sorri-lhe. É uma moça do campo, larga e
rubicunda, de um apetite saudável. A sua consciência é também um órgão são e
adaptável. Quando se deita com Willem na cama embutida na parede por trás do
fogão da cozinha, corre a cortina para se proteger do olhar reprovador de Deus.
Longe da vista, longe do coração; afinal de contas, casar-se-ão um dia. Maria
sonha com o dia em, que o patrão e a mulher morrem, naufragados no mar, e que
ela e Willem passam a viver nesta casa, com seis filhos adoráveis. Pensa nesta
visão enquanto se dedica às limpezas; e quando a patroa sai, desce as gelosias
até meio para não ser vista da rua, mergulhando a sala de visitas na sombra, e
caminha então como se se movesse no
fundo do mar. Põe a jaqueta de veludo azul da patroa, de gola e punhos
debruados a pele, e passeia-se pela casa, captando de vez em quando a sua
imagem nos espelhos. É um sonho inocente; que mal pode fazer?
Maria está agora ajoelhada na
sala de visitas, a esfregar os azulejos azuis e brancos, todos eles exibindo a
imagem de crianças a brincar, uma com um arco, outra com uma bola. Um deles, o
seu favorito, mostra uma criança num cavalo de baloiço. Toda a sala está
atapetada com as suas crianças imaginárias, e Maria limpa-as ternamente com um
pano. Tendo sido criada no campo, o bulício da rua que lhe chega através das paredes,
passos, vozes, todos esses ruídos do Herengracht e o modo como s ruas invadem o
seu secreto mundo doméstico, continua a surpreendê-la. O vendedor de flores
apregoa com uma voz tão inquietante como o cacarejo de um galispo; o amolador
chocalha uma lata para atrair os potenciais fregueses, como se convocasse uma
assembleia de pecadores. Alguém, pertíssimo, apregoa e escarra. E ouve então a
sineta.
Peixe, peixe fresquinho!, canta
Willem com uma voz terrível e desafinada. Robalo, sargo, arenque e bacalhau! E
abana a sua sineta. Ela está tão alerta como uma pastora ao ouvir o tilintar do
seu amor no meio do rebanho. Maria dá um pulo, assoa o nariz ao avental, ajeita
a saia e abre a porta. Está uma manhã tão nevoenta que mal consegue ver o canal
do outro lado do passeio. Willem surge do nevoeiro. Olá, meu amor! O seu rosto
abre-se num sorriso. O que tens aí?, diz ela. Deixa-me ver. O que queres,
Maria, meu patinho? E baixa a cesta ao nível da anca. E se fosse uma bela e
gorda enguia? Como é que gostas delas? Tu bem sabes!, e ri por entre dentes. Prefere
estufada com damascos e vinagre doce? Mm!, suspira ela, ouvindo o barulho dos
barris sendo descarregados de uma barcaça ao fundo da rua e que embatem no chão,
pumba! pumba!, repercutindo
as batidas do seu coração. Não queres antes um arenque?, pergunta ele. Ou um
beijo? Sobe um degrau e quase a alcança. Pumba! pumba! Chiu!,
diz Maria, recuando porque vão pessoas a passar. Willem fica cabisbaixo». In Deborah
Moggach, A Febre das Tulipas, 1999, Edições ASA, 2017, ISBN 978-989-233-874-3.
Cortesia de EASA/JDACT
JDACT, Deborah Moggach, Literatura, Holanda, Tulipas,