sexta-feira, 23 de julho de 2021

José Saramago. Memorial do Convento. «Vem-te deitar comigo, que já comi o meu pão. Era ainda noite fechada, Baltasar acordou, puxou para si o corpo adormecido, morna frescura enigmática, ela murmurou o nome dele, ele disse o dela…»

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(…) O pai disse, Vendi a terra que tínhamos na Vela, não que a vendesse mal, treze mil e quinhentos réis, mas vai fazer-nos falta, Então porque a vendeu, Foi el-rei quem a quis, a minha e outras, E para que as quis el-rei, Vai mandar construir ali um convento de frades, não ouviste falar disso em Lisboa, Não senhor, não ouvi, Disse aí o vigário que foi por causa duma promessa que el-rei fez, se lhe nascesse um filho, quem agora pode ganhar bom dinheiro é o teu cunhado, vão precisar de pedreiros. Tinham comido feijões e couves, apartadas as mulheres e de pé, e João Francisco Sete-Sóis foi à salgadeira e tirou um bocado de toucinho, que dividiu em quatro tiras, pôs cada uma em sua fatia de pão e distribuiu em redor. Ficou a olhar alerta para Blimunda, mas ela recebeu a sua parte e começou a comer tranquilamente Não é judia, pensou o sogro. Marta Maria também olhara, inquieta, depois encarou o marido com severidade, como se estivesse a recriminá-lo pela astúcia. Blimunda acabou de comer e sorriu, não adivinhava João Francisco que ela teria comido o toucinho mesmo que fosse judia, é outra a verdade que tem de salvar. Baltasar disse, Tenho de procurar trabalho, e Blimunda também irá trabalhar, não podemos ficar às sopas, Para Blimunda não haja pressa, quero que ela fique aqui em casa por uns tempos, quero conhecer a minha filha nova, Está bem, mãe, mas eu preciso arranjar trabalho, Com essa mão a menos, que trabalhos farás, Tenho o gancho, pai, que é uma boa ajuda quando se está habituado, Será, mas cavar não podes, ceifar não podes, rachar lenha não podes, Posso tratar de animais, Sim, isso podes, E também posso ser carreiro para segurar a soga basta o gancho, a outra mão fará o resto, Filho, estou muito contente por teres voltado, E eu já devia ter voltado, pai. Nessa noite Baltasar sonhou que andava a lavrar com uma junta de bois todo o alto da Vela e que atrás dele ia Blimunda espetando no chão penas de aves, depois estas começaram a agitar-se como se fossem levantar voo, capaz a terra de ir com elas, surgiu o padre Bartolomeu Lourenço com o desenho na mão a apontar o erro que tinham cometido, vamos voltar ao princípio, e a terra apareceu outra vez por lavrar, estava Blimunda sentada e dizia-lhe, Vem-te deitar comigo, que já comi o meu pão. Era ainda noite fechada, Baltasar acordou, puxou para si o corpo adormecido, morna frescura enigmática, ela murmurou o nome dele, ele disse o dela, estavam deitados na cozinha, sobre duas mantas dobradas, e silenciosamente, para não acordarem os pais que dormiam na casa de fora, deram-se um ao outro.


«Ao outro dia vieram a festejar a chegada, e a conhecer a nova parenta, Inês Antónia, irmã de Baltasar, e o marido, que afinal se chama Álvaro Diogo. Trouxeram os filhos, um de quatro anos, outro de dois, só o mais velho vingará, porque ao outro hão-de levá-lo as bexigas antes de passados três meses». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,